Le Entrevista a Teresa Ricou por Rafael Vieira

Teresa Ricou em discurso directo:

Nasci em Novembro de 1946, na Praia de Granja, a Norte de Portugal, no seio de uma família burguesa.
Segunda filha de Eduardo Ricou, médico de lepra de origem suíça, embarco, em 1949, para Luanda, com ele e com a minha mãe, Alda, brasileira de sangue italiano e mais as minhas irmãs por essas terras de África, a levar a cura ao corpo desses povos negros de pele e transparentes de alma. Dos irmãos que tinha e dos irmãos que vieram somam-se sete.

E foi em terras de Angola, a fazer casinhas e castelos e a misturar o pó vermelho da terra com as mil cores dos sonhos que aprendi as tantas cores que tem o Mundo, o que era a Cultura e tive a certeza do que queria ser. Nem mulher recatada nem mulher casada, antes Tété – Mulher Palhaço. Com espontaneidade, adquiri o gosto pela fantasia de ser, dia a dia, uma mulher livre de preconceitos mas com sentido do mundo onde navegamos.

De volta à metrópole, vivia já os meus 17 anos, os meus pais inscrevem-me no Instituto de Cultura Alemã e depois na Alliance Française do Porto e depois num outro colégio para depois eu voltar a trocar as voltas ao predestinado e partir, desta vez para Londres, acompanhada pelo amigo de família Joaquim Paço d’Arcos, ao encontro dos melhores amigos de Angola.

Aqui, sem a rede dos meus pais, aprendi a viver, a sobreviver, a lutar, a procurar, a não dizer que a conquista da emancipação é impossível.

Fui muita coisa. Dog-sitter e baby-sitter, guia turística, empregada de mesa, disco-jockey. Vendi bilhetes no mercado negro para a primeira World Coup de futebol, aproveitando para assistir, na 1.ª fila, a todos os jogos. Até vi o Eusébio a chorar no célebre jogo com os coreanos na companhia dos velhos amigos de Luanda a que se foram juntando outros tantos: Carlos Monjardino, José Megre, Domingos Sá Nogueira.

Uma amiga, Maria João Campos, ex-assistente de bordo da TAP inscreveu-me num concurso para novas hospedeiras e levou-me de volta a Lisboa.

Casei, fui dona de casa e fui mãe.

Separada, fui cara de campanhas publicitárias, convivi com cineastas, poetas, escritores, pintores e intelectuais. Tudo girava à volta da Arte e das Letras, sempre na descoberta peugada da Arte do Circo. Nos passeios pelo Parque Eduardo VII, com o Nuno num braço e o Mundo de tantas outras crianças no outro, fui encontrando formas de educar pela arte, com animação. Trabalhei com elas dando-lhes aulas de pintura e, no sótão de uma livraria partilhada com Camilo Mortágua, Padre Felicidade, Padre Fanhais e outros revolucionários, dei os primeiros passos em direcção àquele que viria a ser, anos mais tarde, o fundamento de um projecto de Reinserção Social através das Artes.

Com Calvet de Magalhães, director da Francisco Arruda, trabalhei com jovens iniciando-os no mundo das artes e da transformação do Velho em Novo Portugal, Lisboa, a polícia política, tudo isto me asfixiava. Fui para Paris onde vendi jornais na rua, privei com prostitutas, travestis e turistas, mergulhei na boémia parisiense, conheci artistas. Estudei a Arte de fazer Rir na École Jacques Lecoq e frequentei o Gymnase du Cirque do velho Palhaço-mestre Bonot. Aprendi sapateado, acrobacia e dança. Frequentei a Cartoucherie de Vincennes onde os ensinamentos filosóficos e artísticos de uma senhora chamada Ariane Mnouskine, num primeiro estágio, os clowns, deram-me a orientação necessária para prosseguir esta minha vida artística.

Frequentei o Musée de l’Homme onde descobri a cultura africana, as mulheres Mumuila e dos Cuanhama através da etnologia. Com Jean Rouche dei o meu primeiro passo no Audiovisual. Durante o mandato de Langlais, a Cinemateca era o lugar dos grandes encontros. Arrabal foi o desfecho e a oportunidade de realização profissional pela mão de um grande amigo, o Novais Teixeira, um comunista profissional do cinema exilado em Paris. Participei em acções de animação cultural com a comunidade portuguesa e fui directora artística da Maison des Jeunes et de la Culture de Gentilly, um modelo de casa de Cultura que me inspirou e que, anos mais tarde, traria para Lisboa e dar-lhe-ia o nome de Chapitô, assumindo um sério compromisso com a vertente da Reinserção Social e Formação nas Artes.

Na madrugada de 24 para 25 de Abril recebo o telefonema da minha prima Ede, locutora de rádio. Corri para Lisboa e fiz a Festa da Revolução.

Integro o Sindicato dos Trabalhadores do Espectáculo, cruzo-me com Luciano Nobre, o mestre dos Palhaços e, nas Portas de Santo Antão, encostados ao café Castanheira, deixo-me misturar com o cinzento da noite, conhecendo os empresários do Circo, nomeadamente o Ricardo Covões.

Sou convidada para fazer parte do Grupo Faz Tudo do Coliseu dos Recreios, a catedral do Circo. Contratada por outros empresários e de parelha com o Mestre Luciano Lopes, segui em tournées de norte a sul do país. De volta à cidade, depois de ter vivido, pressentido e pensado acerca da condição social e cultural que legava ao esquecimento a Arte do Circo, fui escrevendo uma proposta para a criação de uma base de apoio social e o reconhecimento desta cultura circense. Na Secretaria de Estado da Cultura, no 1.º mandato do Partido Socialista, o Secretário de Estado Dr. António Reis aceitou a minha proposta de integração de um Departamento do Circo, lado a lado com o Departamento de Teatro, passando a fazer parte da Lei Orgânica da Secretaria de Estado.

Mas não esqueço nunca o meu objectivo: aliar as artes ao social. Não me bastava uma mesa e uns papéis na Secretaria de Estado da Cultura, nem me alimentava o conforto de Funcionária Pública. Não tinha desistido do Circo, nem de dar voz aos que fantasiam esta arte, mas muitos mais caminhos haviam para percorrer e o meu chamava-me à Justiça Social. Foi exactamente o desejo do Ministério da Justiça que me levou aos colégios. Nasce o Chapitô.

Com um grupo de sociólogos, pensadores e intelectuais, reunimos esforços e ideias à volta de uma mesa. Um pensamento comum, um sonho que finalmente se concretiza: era a construção do projecto Chapitô a nascer dos escombros da antiga Cadeia das Mónicas ao Castelo, em Lisboa. A 7 de Janeiro de 1981 é criada a Colectividade Cultural e Recreativa de Santa Catarina, uma IPSS – Instituição Particular de Solidariedade Social e mais tarde uma ONGD – Organização Não Governamental para o Desenvolvimento de reconhecido mérito social e cultural.

O Chapitô:

Chapitô: Casa de Cultura – Uma Tenda de espectáculos, um Bar ao estilo vintage de sala de estar, uma Esplanada e uma fórmula mágica para se Ser Criativo.

Chapitô: Projecto pedagógico único em Portugal, uma escola profissional de artes de nível secundário que não termina no terceiro ano, mas prolonga-se através do acompanhamento que é feito pela equipa pedagógica ao percurso profissional de cada aluno que desce a Costa do Castelo, muitas vezes em direcção a Universidades e Instituições de Ensino Superior sedeadas nas grandes capitais da Europa, como Paris, Espanha, Londres e tantas outras...

Chapitô: Projecto social pensado nos jovens e para os jovens, um local de Liberdades e trans-inserção alicerçado na educação para a cidadania. Através do conceito Animação em Acção, pedagogos, sociólogos, artistas e animadores desta Casa acompanham a integração dos jovens nos Centros Educativos Navarro de Paiva e Bela Vista sob tutela do Ministério da Justiça.

Ainda nesta vertente, a Casa do Castelo, no berço deste local a que alguns chamam “babilónia comedida”, recebe alguns destes jovens, dando-lhes alternativa habitacional. Aqui encontram um espaço que é um salto para um outro salto maior: a vida em Sociedade.

Chapitô: Uma Companhia - projecto de convergências e diálogos que, com uma matriz linguística e de expressão fortemente marcada pelo teatro físico - “gesto” -, recuperou o ideal de criação colectiva, transformando peças de autores em campos de discussão entregues ao domínio do público.
Chapitô: Uma obra com história, memória fotográfica e videográfica; uma Biblioteca que foi buscar o nome à poeta Luíza Neto Jorge, grande amiga da Casa que, lado a lado com Agostinho da Silva, ajudou a dar forma ao pequeno Centro de Documentação / Biblioteca.

Como estes, outros amigos nos ajudaram a construir os diferentes espaços: Zeca Afonso, Mariano Franco, Tótó Campos, Luciano Lopes, Quinito, etc. Este espaço é, indiscutivelmente, o único testemunho fiel da História do Circo em Portugal e no Mundo, da história da única Casa que transforma jovens marginalizados em Líderes das Artes Performativas, privilegiado o espaço da Rua e pisando os palco dos Teatros.

Um dos exemplos da nossa contribuição, mais do que na cidade, na sociedade passa pela presença da palavra “Chapitô” no discurso de políticos, comentadores e jornalistas: - “Isto parece um Chapitô”.
Julgo que o Chapitô é uma referência nacional à parte do ainda preconceito de uma cultura portuguesa que, atrevo-me a afirmar, ainda é um pouco provinciana, tradicional.

Pese embora o facto, somos premiados sobretudo pelas culturas do norte da Europa que vêm neste tipo de projectos modelos de sociedade onde as suas culturas são recebidas, reconhecidas e integradas. Quanto a Lisboa, às entidades oficiais falta-lhes o olhar mais sério e atento sobre o modelo, a realidade do Chapitô como mais valia para o país. Não basta reconhecê-lo, é preciso sê-lo.

Qual é o circo, qual é ele, que antes de o ser já o era? O Chapitô… Neste mundo global, rapidamente nos reconhecem pela bela vista sobre o Tejo, pela esplanada e todas as propostas de restauração, mas acima de tudo, e quando não nós tentamos, reconhecem-nos pelo projecto cultural e de acção social. Aqui deixo três testemunhos/ exemplos do nosso trabalho transversal: acção social, educação e cultura.

O sucesso só será sucesso verdadeiro se for o resultado de um trabalho, passo a passo, formiguinha, para que não seja um esforço efémero. Aliado a este sucesso estão muitas vidas e é por isso que nada do que fazemos hoje pode cair no esquecimento amanhã. Todo o nosso esforço tem que, diariamente, reverter-se numa realidade. Neste pressuposto, acredito que Lisboa e Portugal mereçam um espaço como o Chapitô. Mas é preciso que as entidades oficiais também acreditem, ser comprometam e incentivem.

A primeira aposta é terminar o trabalho feito com os alunos que saem agora para o 12.º ano, fazendo-o de forma a reverter o nosso trabalho em resultados positivos para o sistema educativo nacional. O próximo passo, em estudo, passa pela construção do 4.º ano da especialidade e a abertura do caminho ao ensino das artes do circo ao nível superior. Em negociação está a criação de uma estrutura universitária e previsto um espaço com dimensões adequadas para receber esse projecto, isto para além de manter o Chapitô Castelo em plena acção.

Contámos com várias parcerias na área das artes e dos ofícios do espectáculo. Sempre mantendo um modelo integrado. Alguns empresários foram desafiados, temos uma grande esperança no trabalho que estamos a fazer e estamos certos que semearemos os resultados muito em breve. É tempo de investir, o prestígio é sempre uma mais valia para o empresário e os lucros, bem geridos e bem aplicados, revertem positivamente para a humanidade.

E Lisboa:

Para tomar uma refeição, o Restô do Chapitô. Sempre! Fora isso, sugiro a Bica do Sapato. Para espreitar o rio e Lisboa inteira aos seu pés, o Castelo de São Jorge, onde, este ano, temos planos para encenar um grande espectáculo com os nossos alunos, seja essa a vontade das entidades locais. Um parque, ou antes um jardim, sugiro o Jardim Botânico. Num ano em que se fala tanto da preservação da natureza e da questões ambiental, eis um bom exemplo de preservação do bom que temos em Lisboa e em Portugal.

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* Originalmente publicada a 31 de Março de 2011, na Le Cool Lisboa * 281

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