Le Entrevista a João Gomes por Rafa

Na primeira vez que falámos, o cinema preenchia uma parte importante da tua vida, mas surgia acessório. Neste momento, uns quantos anos passados por tabela, já se te assume a função de realizador.

Conta-me lá este teu percurso cinemático.

Para alguns, à arte deve estar anexa uma pureza desinteressada, uma espécie de glorificada diletância precária. Eu acredito profundamente no artista profissional e tenho investido séria e disciplinadamente em aprofundar a minha relação com o cinema para que dele possa um dia viver. Poderei morre a tentar mas morrerei feliz. 

Depois de "Natália - a Diva Tragicómica", surges com um segundo filme, o "Estórias", onde acompanhas quatro pessoas - não personagens, talvez - relacionadas a Lisboa de uma forma bastante diversa. Que "Estórias" te interessou acompanhar ou contar aqui? Não é também o João Serra, o mítico Senhor do Adeus e uma das pessoas que documentas no filme, ele póprio um elemento um pouco trágico, algo cómico, de Lisboa? E os restantes, são estoriáveis alfacinhas?

No meu primeiro filme, “Natália a Diva Tragicómica” (Real Ficção, RTP2, 2011 - http://nataliaadivatragicomica.blogspot.pt/), tracei um percurso de pinceladas biográficas em torno da diva iludida do canto lírico Natália de Andrade que, acreditando ter dotes vocais fantásticos, era (e é ainda hoje no youtube e outros canais) motivo de escárnio para os que a rodeavam. Há portanto uma afinidade clara entre os dois filmes. Ambos partem de e tentam transcender uma ideia simplificada ou simplista de uma figura que pela sua excentricidade se tornou um facto mediático com ecos póstumos. Ambos já falecidos (Natália em 1989 e João Serra em 2010) mas bem presentes num imaginário urbano lisboeta e português. 

Ambas histórias de Lisboa mas ambas universais nos temas que evocam. Mas distingui-los-ia da seguinte forma: com Natália tentei encontrar alguma realidade na ficção permamente que foi a sua vida, com o Senhor do Adeus tento encontrar o que de “ficcional” existe na vida de todos nós. Na medida em que criamos estórias e narrativas pessoais simplificadas para nos apresentarmos aos outros e ao mundo que, pela nossa complexidade intrínseca, nunca nos poderão realmente definir.

Como foi a tua convivência com o João Serra para o filme? Era uma personagem adorável, postal essencial do Saldanha (e Praça de Espanha e os demais sítios onde acenava). Tinha sobretudo uma desarmante honestidade e uma pueril ingenuidade. Era autêntico - quiseste transportar isto para o filme?

Este filme é, para mim, uma iniciativa de puro fascínio. Por algum motivo insondável o caso prendeu-me a atenção. Começa sempre assim, por um apelo insondável. Para clarificar a minha visão propus-me, desde então, a fazer a anatomia desse apelo. Porque me falou tanto a história deste homem e, sobretudo, das histórias que dele se contaram? Quando das homenagens póstumas ouvi falar, tive como primeira e imediata reacção o desdém próprio de alguém que nega (ou precisa de negar) qualquer manifestação de humanidade desinteressada. Uma camada de cinismo muito primária e pouco produtiva. 

Mas talvez do calor das míticas histórias de convívio e comunidade rural dos meus pais e da simplicidade de conversas à volta da fogueira tenha ficado também esta idealização mágica que tornava o senhor altamente inspirador. Havia nesse percurso de auto-descoberta que re-equacionar o mito. Ver o Senhor do Adeus a uma nova luz rejeitando dois extremos da retórica dominante.

- Ele não representa, para mim, uma arqueologia do calor humano perdido que a mitologia póstuma lhe atribuiu. Esse é o tipo de simplificação racional que o mito cristaliza para saciar a nossa premente necessidade de “arrumação intelectual”.

- Mas é igualmente redutor vê-lo como o típico “cromo de Lisboa”, um excêntrico com traumas irresolvidos.

Percebi desde cedo que ele é, para mim, uma versão exacerbada de uma muito comum e contemporânea urgência emocional, nunca resumível em nenhuma das duas proposições anteriores. Algo para o qual os contactos fugazes com os transeuntes constituia um fortíssimo elemento paliativo. O que de maravilhoso tem o seu caso é a transparência com que assumia o que muitos de nós escondemos. Nesse sentido o seu exemplo foi de facto poético e invulgarmente inspirador.

O que te fascina no documentário como processo e como máquina de ver o mundo - és um homem com uma máquina de filmar que pretende fixar, dando aquele enquadramento e edição só teus, histórias de vida que te atraem? Confirmas sermos nós, portugueses - vocês, realizadores portugueses - fortes e objetivos no documentário e na etnoficção?

Sem romantizar a magia do processo criativo, é na minha relação profunda com um tema que tudo começa. É o tempo e a reflexão que trazem luz a esse apelo inicial. É aí reside o mapa intrínseco do filme, a sua fonte de coerência.

É um universo desigual. Vejo, para meu desagrado, mais pretensões etnográficas do que etnoficcionais no cinema documental português. Um certo tom de realismo antropológico datado e inconsequente. E depois há filmes como "É na Terra, não é na Lua" e "Linha Vermelha" que são orgulhosamente de outro campeonato: maduros e pensantes... exceções.

E, já que estamos de estreias, lança um convite para que te assistam ao filme no São Jorge. Sem receios de umbiguismo, vem.


Há na televisão uma espécie de esperanto do audiovisual, uma pensamento dominante e global que seca e simplifica o que é complexo. É voraz esta tendência acrítica e a interrogação produtiva perde espaço de dia para dia. O que o "Estórias" faz é convocar o espetador, de cinema e televisão, problematizando. Estão pois convocados!

Cortei deliberadamente qualquer questão relacionada com financiamentos/perspetivas e eteceteras sobre o estado do cinema em Portugal. A mim parece-me que a criatividade encontra caminhos que o momento nem desconfia. Naturalmente que um filme tem custos associados (e necessidades de público e distribuições) que suplantam muito do restante que se vai fazendo na arte. 

O que se pode esperar então de João Gomes? Ficção ou um caminho ainda mais vincado de "recoletor" de lisboetas?

O filme fala precisamente de uma malha ficcional de que se tece o nosso quotidiano. Nós apresentamo-nos e representamo-nos ao mundo. Assim se o documentário foi uma porta de entrada e uma forma de ganhar traquejo, é hoje para mim um terreno inesgotável de criatividade. Pululam a minha mente inúmeras ideias para ficções e documentários. É mais que conhecida e batida a diluição pós-moderna da fronteira entre os dois, mas nem por isso menos pertinente e produtiva.

Lisboa. E pegando no caso do Cinema Londres, que até foi o nosso último verdadeiro cinema de bairro e desapareceu agora. Não devemos ficar em luto, mas lamenta-se. O período de nojo já vinha desde há décadas, com o então advento do vídeo, mas a estocada final foi mesmo com nets e cineplexes. Que achas destas mudanças assim? Onde podemos agora assistir cinema em tela?

É uma questão vasta. Li recentemente um livro interessantíssimo de Margarida Acciaiuoli "Os Cinemas de Lisboa". Fala-se nele das sociabilidades comunitárias perdidas. Mas antes do advento da introspeção reflexiva, é descrita a cinefilia como um circo de mimetismos sociais com "aplausos e pateadas" durante as sessões. E são frequentes os períodos históricos de escapismo febril que muitos associam hoje aos multiplexes e afins.

Mas para mim pessoalmente é de facto verdade que os ciclos de atenção do espetador mirraram para lá do suportável. Não sei se respondo à pergunta mas o único sítio onde ainda hoje vejo quem se insurja (e violentamente!) contra sussurros e bichanaços durante as sessões é na Cinemateca... "violência" plenamente justificada. 


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* Originalmente publicado a 22 de Março de 2013, na Le Cool Lisboa * 000

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