Le Entrevista a Ka§par (DJ e produtor) por Marcelo de Magalhães


Ka§par é DJ e produtor há mais de 15 anos, iniciou-se ainda em miúdo e, devido a isso, começou a tocar na ilegalidade. Em 2005, foi um dos seleccionados pela Red Bull Music Academy e embarcou numa viagem até Seattle, depois de vários discos lançados em editoras de referência como as Holandesas Clone e 4lux, no último ano firma a sua carreira enquanto DJ internacional com actuações em Nova Iorque, Filadélfia, Roterdão e Amesterdão. Além disso, lançou o seu primeiro álbum, «Ascensus» na primeira semana de Abril deste ano!

Ka§par tem dado que falar e, como não podia deixar de ser, fui falar com ele.

Começaste a passar discos com 15 anos, como é que te meteste tão cedo na arte?

Acho que comecei porque sofri de uma paixão inconsolável assim que ouvi uma TR-808 quando era miúdo, nunca tive uma sensação tão clara de qual seria o meu destino como quando ouvi música que me fez dançar pela primeira vez. Aliás, sofria de alguma ansiedade por causa disso, já quando era miúdo ia antecipando algumas das dificuldades que costumam estar associados a um destino com tão poucas garantias. Não estava muito longe na realidade.

O resto é história, mal comprei os primeiros discos agarrei-me logo à composição, gravação e produção. Aprendi muito com pessoas que ainda hoje me são muito próximas e a quem estou muito agradecido, e apesar de ter estudado psicologia clínica, sempre assumi esta como a minha inquestionável paixão.

Onde começaste a tocar e que estéticas musicais passavas na altura?  Como sentes que evoluíste do ponto de vista do DJ?

Acho que não mudei assim tanto, procuro ainda as mesmas coisas que me lembro de ter sempre procurado, apesar de ter aprendido a apreciar música de forma mais generalizada e a não ser tão dogmático. Por exemplo, quando era mais novo gostava muito de (e até compunha muito) Drum'n'Bass, mas aquilo que eu gostava no género acabou por deixar de se encontrar por lá, no virar do milénio, e tive de voltar a Detroit ou a Chicago para o redescobrir.  Nunca me desfiz da minha colecção de Drum'n'Bass e sou capaz de ouvir alguns discos de vez em quando para matar saudades.

Sempre gostei e gosto muito de hip hop e soul, compro discos e toco-os sempre que posso. A música que está disponível para que um DJ faça um discurso interessante é imensa e diversa, quanto mais conhecermos, mais facilmente nos exprimimos.

Acho que o que procuro é essencialmente emocional e intuitivo, difícil de descrever. Um arrepio, um calor, uma carícia, ou o contrário… alheamento, viagem, sugestão espacial. Eu aprendi que a estética é transitória e é apenas a «língua» com que se traduz uma ideia musical num DJ set, e é de facto no conteúdo que um DJ se mostra especial, seja na profundidade do que exprime ou na intensidade com que o faz.

Tens uns quantos milhares de discos, quando começaste a comprar?

Como disse, cerca de 1991, 92, 93, entre os 9, 10, 11… a início pedia ao meu pai para comprar, depois comprava eu com o dinheiro dos aniversários e do Natal. Alguns dos primeiros discos: Black Sheep - Strobelight Honey, Gary Clail - Human Nature, Tribe Called Quest - Can I Kick It?, mas estes são apenas aqueles que fica bem dizer, porque nem todos valeram a pena… quer dizer, como é natural a qualquer neófito, nem tudo o que eu eu comprei valeu a pena.

Numa altura em que ser DJ é visto como «cool», qual a linha que separa um DJ de um não-DJ?

Perdoem-me o trocadilho, mas nunca tive grande interesse em fazer linhas, mas às vezes elas ajudam a esclarecer alguns pontos. Se existem, são duas - essencialmente - a honestidade (o genuíno amor pela música, que suplanta a necessidade de valorização do ego que quase sempre está subjacente aos motivos dos DJs) e o sentido de sacrifício (lutar pelo que se acredita, evitando ao máximo contaminar essa fé por uma vã necessidade de aprovação ou rendimento). Ao não cumprir com um ou outro ponto, se calhar já não se fala de um DJ, mas de uma pessoa que faz outro tipo de coisa, seja uma personalidade pública que passa música, um produto sob o disfarce de um DJ, ou - no outro extremo - alguém obcecado pelo «seu som» que não consegue compreender o lado lúdico e comunicativo desta actividade.

Como vês a arte do DJing no futuro?

Não sou pessimista, a performance do DJ mudou muito nos últimos anos. Desde o tempo em que o único formato conhecido era o vinil, até ao momento presente em que quase não se consegue distinguir um live de um DJ set (um live de, por exemplo, John Talabot, tem menos aparato e usa menos instrumentos que um DJ set do James Zabiela, por exemplo), o que aconteceu foi um processo de democratização da tecnologia, que em nada altera para mim os parâmetros do que define o talento ou não. Um bom DJ que passa discos de vinil tem o mesmo valor, para mim, que um DJ que usa pens USB nos CDJs, o que importa é a qualidade da narrativa, a riqueza das referências culturais e a execução técnica (mesmo que não consista no próprio DJ fazer  beatmatching). Pessoalmente, misturo sozinho sem ajuda de software ou equipamento digital, porque prefiro controlar a tecnologia a ser controlado por ela, mas uso muitos efeitos de som nos meus sets, coisa que há quatro ou cinco anos era impensável.

Compro vinil como ficheiros, e sou ecléctico até no formato.

Continuas com a mala de discos atrás, quando compras discos em Lisboa, onde costumas comprá-los?

A importância do vinil para mim é a de simbolizar um trabalho indiscutivelmente concretizado. A fabricação de um disco envolve uma indústria de muitas pessoas a trabalhar, e um empenho grande por parte da editora para materializar uma obra de arte. Não pode desaparecer simplesmente em prol da conveniência, embora concorde que não se pode ficar demasiado agarrado ao vinil, também simplesmente, por uma questão afectiva e histórica, porque a tecnologia hoje pode permitir elevar a arte técnica do  DJing. Para mim, deveria permanecer em cada DJ, um certo grau de respeito e investimento no formato de vinil como forma de reconhecimento por todos os artistas que lutam para melhorar a sua música e chegar a editar num mercado muito restrito e cheio de qualidade, que é o mercado de vinil actual.

Actualmente, sou frequentador assíduo da FLUR, porque é a única loja que resta onde posso garantir que encontro os discos que procuro, muitas vezes já (bem) escolhidos e postos de parte por pessoas que conhecem a minha sensibilidade e tacto musicais.

Agora és residente no clube ZERO, que está a ser gerido e programado às sextas e sábados pela Bloop. Por lá já passaram artistas como Delano Smith, Kenny Larkin, Joakim, já podes revelar com quem vais tocar nos próximos tempos?

A influência que tenho junto da programação do ZERO não é extensa, penso que sou uma mais valia pelo domínio que tenho de diversas linguagens musicais ao mesmo tempo, e por causa de uma atitude algo «camaleónica» que sempre gostei de ter. Aprendi isso a ouvir pessoas como Andrew Weatherall, Scruff, Garnier, Harvey, Kevorkian ou principalmente o Tiago Miranda… sempre gostei da ideia de que, apesar da necessidade de se saber dominar uma pista com processos mais clássicos, que se tenha a capacidade de saber subverter esses mesmos processos com audácia. 

Conheço uma forma de como muitas linguagens musicais se relacionam, portanto é habitual eu actuar com artistas cuja música exija uma preparação mais ecléctica ou fora da convenção house-techno mais clássica. No entanto, eu não escolho esses convidados, embora por vezes tenha sugerido. Para já ainda aguardo para saber com quem actuo em Junho.

Que artistas mais gostaste de ouvir no clube?

Joakim & Kindness, Art Department, Who Made Who, Delano Smith, Nick Hoppner, Marcel Fengler, entre outros que me possa vir a lembrar. O clube já teve convidados mais famosos, e outros menos, mas normalmente é mágico quando a entrega do DJ é excepcional… porque o público nativo costuma ser muito bem versado no que está a ouvir, embora a partir de certa hora da noite, a festa é imperativa.

Além do ZERO, em Lisboa, podemos ouvir-te em registos diferentes. Como te adaptas aos diferentes espaços?

Trabalho com o Café Suave, no Bairro Alto, onde actuo muito pontualmente como forma de me manter ligado às minhas raízes e ter o prazer de tocar música sem o peso da personalidade do DJ. O espaço pertence, entre outros, a um grande amigo meu que é o DJ Kronic, que apostou em mim quando era o dono do Clube da Esquina no princípio dos anos 2000 e com quem passei inúmeras grandes noites, eu faria tudo o que ele me pedisse, é como um irmão.

A diferença entre actuar no ZERO ou no Suave é muita, mas principalmente num espaço onde o meu trabalho está menos comprometido porque as pessoas estão entretidas não só com a música como à conversas umas com as outras, vou tendo ocasião de passar música diferente e se calhar pouco provável, dada a música pela qual sou conhecido como produtor por exemplo. No primeiro espaço, misturo meticulosa e subtilmente, uma banda sonora densa e introspectiva, no outro, faço transições mais musicais e súbitas passando música mais variada e menos formal.

Não tão tranquilas, calculo, foram as tuas passagens pelos Estados Unidos (New Jersey e NYC) e ainda por Roterdão! Furacões e nevões à parte, comparando com Portugal, que diferenças percebeste na «cena clubbing»?

Foram duas viagens importantes, cheias de aventuras, de onde extraio muitas amizades e memórias fenomenais, em ambas as ocasiões as prestações correram muito bem e a resposta não podia ter sido melhor. A diferença principal que encontro, a nível pessoal, foi que foi muito mais fácil chegar a ser cabeça de cartaz fora de Portugal que dentro, infelizmente. A nível geral, na Holanda as pessoas são muito conhecedoras da música que escutam um DJ passar e, nos USA, a cultura não é tão desenvolvida, no entanto o espírito de festa é inato e imediato.

Tocaste em Amesterdão no fim-de-semana de 25 de Maio. Quando a chegas a uma cidade estrangeira do que mais sentes saudades?

Ao fim de alguns dias, sinto mais saudade dos amigos e do Sol, do que da cidade propriamente, porque apesar de ser um apaixonado alfacinha, sou também ávido de viajar e conhecer outras culturas.

Sentiste que a cultura clubbing, em comparação com Lisboa, é muito diferente?

É muito diferente, sim, há uma enorme distinção entre o «clubber-turista» e o «clubber-local», normalmente os turistas param em qualquer sítio e contentam-se com uma selecção de top 40, e o clubber local é extremamente instruído e esclarecido sobre muito do que se passa artisticamente. Falar com colegas DJs e produtores holandeses é uma experiência peculiar porque a profundidade do que dominam é tão grande que tanto se aprende muito, como também se dá a muito a aprender. Os próprios DJs e produtores de Amsterdão dizem que a população geral está muito «mimada» (expressão original «spoiled»), porque com a qualidade e frequência com que ocorrem certas noites em Amsterdão, muitas vezes pode perder-se a capacidade de valorizar devidamente um artista por causa dessa sensação de que há sempre algo mais e melhor a acontecer numa dada noite.

Quando estás a tocar lá fora e falas com as pessoas, qual o imaginário das pessoas em torno de Lisboa em si?

Uma das mais lindas cidades do Mundo, plena de cultura e história, com uma riqueza paisagística insuperável. E eu concordo.

E quanto à cena «clubbing» de Lisboa qual é a visão internacional? E a tua?

Mais uma vez converge, Portugal é visto pelos artistas internacionais como um país onde se consegue actuar com condições vantajosas, facilmente, no entanto a valorização interna do talento nativo e a capacidade de exportação do mesmo ainda precisa de muito trabalho.

Começaste a produzir também muito cedo, que artistas te influenciaram e te continuam a influenciar?

Sempre fui um fã incondicional de quase toda a música feita em Detroit, portanto Moodymann e Carl Craig estiveram muito depressa no meu livro de referências (desde os anos 90), tal como Masters At Work, os Body & Soul em N.Y, ou em Berlim, Moritz von Oswald e a trupe da Basic Channel, ou a cena Bass do Reino Unido. Também aprendi muito a ouvir a música de pessoas como DJ Premier, Dilla e Madlib, por outro lado Kraftwerk, Gottsching, e Klaus Schultze, ou James Brown, Prince, Candi Staton ou Lee Perry… Os produtores contemporâneos oferecem uma inspiração técnica, e os clássicos uma inspiração emocional.

A tua obra é, na sua maioria, muito autoral. Em que te inspiras e como é o teu processo de produção artístico?

Depende muito do tema, por vezes começa com uma ideia que surge de forma espontânea fora do estúdio e por vezes começa com um processo de experiência. É no momento de fazer o arranjo e jogar com as várias ideias que vou acumulando que procuro dar o cunho. No geral procuro garantir um carácter rítmico rico e pouco comum, usando elementos que referenciam diversas estéticas e culturas musicais, e contrastá-las com melodias invulgares e um pouco imprevisíveis que surgem de jam sessions em cima dos primeiros grooves que aparecem. A forma como misturo e gravo os elementos é muito importante, para garantir o carácter, a cor e a profundidade dos elementos que se vão sobrepor e entre-cruzar.

És um dos mais internacionais produtores portugueses. Com discos pelas holandesas Clone e 4lux, aliás, por esta última, saiu o teu álbum «Ascensus»! Porque é que este disco é tão especial?

É, antes de mais, um álbum de estreia tardio, antecedido por algumas dezenas de edições individuais, dispersas entre muitos colaboradores. Isso deveria ser indicativo de um grande cuidado na produção do mesmos e de um ponderar prolongado no que o material deveria consistir e transmitir. A ideia que tinha para este álbum era clara para mim: que funcionasse em qualquer ordem nas suas músicas, e que todas as faixas proporcionassem um momento de contemplação para quem as escutasse. Simboliza uma procura pessoal pela concretização de uma visão, mas é apenas um primeiro passo na direcção do que queria deixar como a minha obra.

Depois deste álbum «Ascensus» editaste uma faixa numa compilação da editora de Amesterdão Tomorrow Is Now Kid, mais edições em breve?

Tenho mais quatro edições programadas para os próximos meses, em vinil. Os colaboradores são vários, de Singapura a Chicago, mas prefiro guardar a surpresa para quando tudo estiver mais perto de se materializar. Uma das coisas que aprendi com os anos, é que as coisa só têm valor quando surpreendem, e acho que vou guardar isso para mim por mais umas semanas até que, um a um, estes trabalhos se imponham naturalmente na percepção de quem acompanha o meu trabalho.

Achas que o clubbing pode de alguma forma influenciar a transformação na sociedade?

Sem dúvida, o clubbing não é mais do que uma versão pós-industrial e moderna, de rituais ancestrais que praticamos como espécie há milhares de anos. Um DJ capaz e rico no seu domínio conhece bem o alcance que um DJ  set bem executado pode ter na percepção de quem o ouve, é comparável ao lento evocar e invocar de um feitiço. A pista de dança pode e muitas vezes é, um espaço de alcance de estados de percepção distintos que descortinam um pouco de uma realidade velada. Claro, que grande parte do clubbing é apenas sair à noite, beber copos em excesso e vociferar, em laia de cântico de claque, as velhas cançonetas que se ouvem nas mesmas rádios desde há trinta anos, esse tipo de entretenimento também sempre existiu mas continua a não ser mais do que uma alternativa menos interessante a meu ver, à verdadeira iniciação que se pode experiênciar de olhos fechados a dançar boa música.

Na tradição Sufi, por exemplo, a dança é vista como um meio para um fim, mais do que como uma mera convenção social… pergunte-se aos Darvishi: os Dançantes giram e os Cantantes cantam (público e DJ, na sua analogia).

E quanto a outros produtores, que talentos radicados na cidade gostavas de destacar?

Pergunta difícil, há muitos e portanto um risco elevado de me esquecer de alguém… há um certo sub-contexto quando se fala em Fulano e se omite Sicrano. Se isso acontecesse comigo, era apenas por lapso, e de qualquer forma teria de demorar uma eternidade a responder a tal questão, portanto tenho reservas ao referir casos particulares... mas tenho muita fé nas várias e eclécticas qualidades do Luís Pinto e um apreço muito grande pela capacidade de me impressionar que o João Costa (Daino) tem. Também sou daqueles que acha que o Tiago Miranda é um génio, mas isso é de certa forma um lugar comum...

No pouco tempo livre que acredito que tenhas, que gostas de fazer pela cidade? Descreve-me o «teu dia perfeito» na cidade de Lisboa!

Eu e ela, acordamos depois de passar a noite em casa da minha tia-avó, senhora distinta que mora na Graça e visitamos com frequência, levantamo-nos pelas 08:00. O pequeno-almoço é num qualquer cafezinho em Santa Clara, perto da Travessa Conde de Avintes. Depois, apanhamos algumas pérolas de vinil na Feira da Ladra até as 12:30 e descemos para almoçar um bagel com salmão no Deli Delux, logo a seguir a loja ao lado abre e passamos algumas horas com as novidades que chegaram à FLUR.

Pelas duas é metro até ao Rato e passeio rápido à Estrela, onde um grupo de amigos nos espera para um piquenique ao Sol, e por lá ficamos um pouco. Pelas 16h outro amigo apanha-nos e vamos até Sintra para escutarmos uma palestra sobre hermetismo da poesia do período romântico na Casa Do Fauno e beber uma cerveja com hidromel no Bar Medieval. À saída, decide-se que vamos todos ao Bairro, regressa-se a Lisboa para uma pizza no Simplesmente, na Rua da Atalaia, depois segue-se uma Piña Colada no Café Suave (insuperável), e dali um táxi para um pulinho ao Puro Vício em Alcântara (espaço muito confortável que conheci recentemente), e pelas 04:00 uma ida ao ZERO para acabar em grande e o regresso pelas 07:00, pouco antes de fechar, estoirados mas com a sensação de que foi mais um dia em grande na mais linda cidade do mundo.

_
Ligações

Mixcloud de Ka§par: http://www.mixcloud.com/djkaspar
Soundcloud de Ka§par: http://www.soundcloud.com/kaspar


Entrevista por Marcelo de Magalhães

Sem comentários:

Enviar um comentário