Le Entrevista com Luís Vieira por Rafa El
Apresente-se sucintamente e diga-me como surgiu - e qual é - a sua relação com marionetas.
Desde criança sempre tive um fascínio por marionetas e imagens em movimento. Era algo que me emocionava. Ver aqueles seres que pareciam vivos e, ao mesmo tempo, intrigava-me a relação existente entre quem os manipulava e as próprias marionetas. Parecia-me algo mágico. Eu nasci na Guarda, onde passei a minha infância e adolescência, onde brinquei aos cowboys no meio de barrocos gigantes e foi aqui que estudei música e acabei por ter um grupo de música que dava bastantes concertos e me fazia sonhar. Mas esta atracção pela arte do movimento talvez tenha começado com o meu pai que, quando trabalhou para o Inatel, fez alguns acompanhamentos a bonecreiros, e eu ia com ele, levava-os aos sítios para fazerem espectáculos, tal como levava películas de cinema a aldeias aonde não havia cinema. Mas o início do meu trabalho como criador e actor-manipulador já foi em Lisboa.
Quando nos iniciamos num universo que joga com o mito da criação, desenvolvemos uma relação quase que umbilical com estes seres a que damos vida, é como se fizessem parte de nós e a partir de dado momento já não é possível caminhar sem eles. Porque me entreguei a este mundo? Porque tenho a oportunidade de incorporar todos os meus interesses neste universo e fazer o que mais gosto: esculpir, modelar, pintar, criar música, representar… Não me consigo imaginar de outra forma.
Comente-me um pouco do seu percurso profissional.
Comecei por estudar Economia no ISEG, mas rapidamente percebi que este não era o meu caminho, na verdade eu já o sabia. Rapidamente comecei a trabalhar nesta área com a companhia Marionetas de São Lourenço, que criou o Museu da Marioneta, e que na altura funcionava num edifício bastante degradado no Largo Rodrigues de Freitas, entre a Graça e Alfama. Em 1993 resolvi criar a companhia A Tarumba - Teatro de Marionetas, juntamente com a Rute Ribeiro que também partilha comigo a direcção artística do FIMFA. Unimos as nossas mãos a estes fios e não mais parámos com o nosso projecto de apresentar espectáculos de teatro de marionetas para adultos. Por este percurso passei pelo Institut International de La Marionnette, em Charleville-Mézières, apaixonei-me pelos Teatros de Papel, criámos muitos espectáculos, fizemos inúmeras digressões: Argentina, Índia, Paquistão, Escócia, Espanha, Brasil, Turquia… Concretizámos o desejo que Lisboa tivesse um grande Festival Internacional de Marionetas, abrimos o CAMa - Centro de Artes da Marioneta, onde quisemos que todos os nossos livros (e são mesmo muitos, não cabem no nosso espaço) estivessem acessíveis a todos… enfim, são dezoito anos de intensa actividade pela arte do movimento.
Lisboa está quase a receber mais uma edição FIMFA. Que podemos contar desta décima primeira edição, depois de no ano passado terem celebrado uma década?
De 12 de a 6 de Junho Lisboa vai receber cerca de 23 companhias e criadores, provenientes de diversos países, como a Alemanha, Bélgica, Espanha, Estados Unidos da América, Finlândia, França, Holanda, Noruega, Reino Unido e Portugal. Estão previstas mais de cem representações que envolvem espectáculos de sala, de pequenas formas e de rua. É ainda desenvolvida uma componente laboratorial e experimental, que permite a aproximação e troca de experiências entre criadores, bem com um conjunto de actividades complementares. Os espaços de apresentação são o Museu da Marioneta, o Teatro Maria Matos, o Teatro Nacional D. Maria II, o Centro Cultural de Belém, o Cinema S. Jorge, o CAMa - Centro de Artes da Marioneta e, é claro, as ruas de Lisboa. O Festival realiza ainda um conjunto de extensões a outros locais do país, estabelecendo parcerias com o Centro Cultural Vila Flor - Guimarães, a Fundação de Serralves - Porto, o Teatro Municipal da Guarda - Guarda, o Teatro Virgínia - Torres Novas e o Teatro Viriato - Viseu.
Podemos afirmar que com a décima primeira edição o FIMFA entra na puberdade, e uma era revolucionária irá tingir esta edição. Mais rebelde e mais controverso do que nunca, os espectáculos programados revelarão a múltipla presença da marioneta nas artes cénicas de vários países.
Marionetas, punk, música mecânica, autómatos, formas animadas, cinema, pintura, ópera, nova magia, vídeo, sombras, performances, morte, vida… Temas actuais controversos, projectos polémicos, a tradição vs. contemporaneidade. Uma reflexão artística sobre estes pequenos seres e os seus manipuladores.
Desde o início que quisemos realizar uma abordagem nova ao teatro de marionetas e ao universo das formas animadas, que reflectisse sobre a marioneta contemporânea, em dialéctica com o discurso artístico, de uma forma mais geral, numa constante relação quase que provocatória com a tradição de raiz popular e etnográfica. Tentar perceber que relações eram possíveis de construir a partir deste encontro, entre esse lado mais artesanal e o discurso artístico mais actual, como esses dois lados podiam reflectir duas formas de olhar o mundo e de como o discurso artístico contemporâneo se pode ou não refundar na tradição. Em termos da programação do Festival tentamos criar um mostruário dessa essencial multiplicidade, que está consubstanciada no mundo das marionetas.
A marioneta soube ocupar o seu lugar na paisagem artística e cultural contemporânea. Inovadora e atenta ao mundo actual, novas tecnologias e novos temas trouxeram-lhe a capacidade de se reinventar. O FIMFA oferece a oportunidade de a ver em todo o seu esplendor, numa grande diversidade de técnicas (sombras, objectos, manipulação directa, teatro visual, etc.) e propostas estéticas, estabelecendo ligações entre a marioneta, a dança, vídeo, circo, teatro, instalações plásticas...
Nestes tempos conturbados aguardamos ansiosamente a visita de todos ao universo da marioneta contemporânea e das suas metamorfoses… Objectos, sombras, espelhos, reflexos, cabos eléctricos, dança, pintura, vídeo, numa infinidade de formas e conceitos que abordam a política, a literatura, o ambiente, a revolução, assassinatos… e revelar os artistas que estão por trás deste universo, a quem chamamos marionetistas, e que são, sobretudo, actores e criadores que trabalham com objectos, marionetas ou sombras, que jogam com a ilusão e baralham os modos clássicos de representação.
Gostava que contribuísse para destruir um mito. O de que o Teatro de Marionetas é só para crianças acompanhadas pelos pais. Imaginemos uma inversão: podem os pais convidar os filhos, porque gostam realmente e porque há espectáculos que claramente são adultos.
Esse é um mito que tentamos destruir desde a primeira edição do festival, mas é difícil. É preciso dizer que estamos a falar de teatro, e que, tal como o cinema, seja de animação, ou não, e independentemente de serem utilizadas marionetas ou objectos, isso não significa que os espectáculos sejam para crianças. Já tivemos espectáculos que eram para maiores de 18 anos ou, como acontece este ano, para maiores de 16 anos. E o que é curioso é que as marionetas começaram por ser utilizadas muitas vezes em contextos revolucionários e como crítica social, basta pensarmos no Punch & Judy e mesmo nos nossos Robertos.
Sim, os pais podem convidar os filhos para verem espectáculos que tratam de temas actuais e que recorrem ao vídeo, à pintura e a efeitos especiais e a marionetas completamente surreais, que são tudo menos infantis.
Recordo por exemplo o nosso espectáculo “Mironescópio: A Máquina do Amor”, que aborda o amor e o erotismo, que é para adultos, mas tivemos também muitos pais que voltaram uma segunda vez com os seus filhos adolescentes e os seus comentários: “Afinal marionetas podem ser muitas coisas…”.
Recordo-me de ver espectáculos das Marionetas do Porto, da Tarumba e do Teatro do Montemuro (e ainda mais além, filmes de Svankmajer como os notáveis Faust e Alice, dos Quay Brothers e o Meet The Feebles) que demonstram técnicas de marionetar que vão muito além do Teatro de Robertos ou Bonecos de Santo Aleixo. Teatro de Marionetas é muito mais do que uma conservadora visão de um pequeno teatro de cartão com um pequeno pano de cena. Comente-me e acrescente por favor.
O teatro de marionetas, de objectos ou de formas animadas, impõe-se no século XXI como um dos espaços nucleares da criação contemporânea, um espaço irreverente e de liberdade artística.
O teatro de marionetas é a arte da experimentação, por excelência. É um campo artístico que soube abolir as fronteiras e captar a atenção das mais variadas áreas artísticas, estabelecendo pontes com a dança, o teatro, as artes plásticas, o cinema e as novas tecnologias, numa apaixonante conexão, originando projectos inovadores, que abalam o tecido artístico, nas suas várias facetas, que quebram tabus e que nos permitem denominar esta realidade artística, à semelhança do “novo circo”, de “nova marioneta”.
A riqueza está em pegar neste universo, e saber incorporar-lhe vida. Basta lembrar uma companhia que já trouxemos várias vezes ao festival, os Hotel Modern e a forma como eles abordam temas como a guerra, em conjugação com o vídeo e uma forma muito especial de estar em cena. É uma arte que conjuga todas as outras.
Quanto ao FIMFA 2011 o que destacaria de espectáculos e de actividades.
Este ano, para além de artistas consagrados, o enfoque está dado aos jovens artistas de diversos campos artísticos que trabalham com e/ou sobre marionetas e formas animadas. Um teatro de Imagens. Gostaria de destacar o espectáculo de abertura do festival da jovem companhia Théâtre de l’Entrouvert que nos levará por um percurso fascinante à ‘luz de velas’, onde seremos surpreendidos por marionetas, silhuetas, imagens, reflexos… e pela beleza poética deste trabalho peculiar. A não perder o espectáculo “Jerk” de Gisèle Vienne, que era algo que o FIMFA desejava apresentar há já algum tempo ao público lisboeta. Um espectáculo arrepiante, polémico, no limiar do suportável, com uma interpretação fenomenal de Jonathan Capdevielle e texto de Dennis Cooper, sobre o universo de um serial killer, que não deixará ninguém indiferente e que não aconselhamos a pessoas sensíveis… e que penso que vai ser muito polémico.
O novo projecto do grupo finlandês WHS, da autoria de Kalle Hakkarainen, que é a imagem escolhida do cartaz deste ano do FIMFA, vai deixar-nos atónitos e completamente boquiabertos com o seu espectáculo que nos lembra o mundo surreal de David Lynch, numa sincronização perfeita com o vídeo, os últimos momentos do embate de um carro e a dilatação que produz no corpo e na matéria, depois deste choque. É magia ‘nova’: imagens estáticas ou em câmara lenta que julgávamos só serem possíveis de visualizar em cinema, decorrem agora no palco à nossa frente… e o ambiente sonoro de Samuli Kosminen, entrelaça-se neste universo de experimentação.
Mas também há muita música, a não perder também a ópera “A Faluta Mágica” numa adaptação com uma orquestra ao vivo, dois marionetistas e um contratenor fantástico, em que recorrem a marionetas de luva e vídeo numa interessante conjugação. Os Jéranium & Man’Hu voltam com o seu carismático projecto poético em tornos dos objectos e da música, com um concerto-instalação que nos fará sonhar com aquelas máquinas sonoras e sensíveis. Os CaboSanRoque marcam outro grande momento, e revela como a reutilização e transformação de maquinaria e de objectos podem produzir música. Neste caso, o equipamento de uma antiga fábrica de bolachas foi utilizado para a construção de uma orquestra mecânica completa. Pistões, electroválvulas, roldanas, motores e tapetes rolantes que passaram os últimos vinte e cinco anos a produzir bolachas, foram recombinados para construírem uma nova fábrica, agora destinada à produção de música. Os músicos são os novos operários.O Teatro de Ferro apresenta o seu último espectáculo, bem como Madalena Victorino, num trabalho que alia objectos e dança. Camille Boitel… enfim e muitos mais, numa verdadeira maratona marionetística. Dentro do apoio à criação destaco ainda o Projecto Embrião com a apresentação de pequenas formas por artistas portugueses.
Dentro das actividades complementares gostaria muito de destacar a exibição no Cinema São Jorge do Documentário “Turnabout: The Yale Puppeteers”, e a presença do realizador Dan Bessie. Um documentário histórico e comovente que recorda a vida de três artistas gay, Forman Brown, Harry Burnett e Roddy Brandon, que fazem parte da história do teatro americano e, muito em especial do teatro de marionetas. Viajaram pela América, durante setenta anos, com as suas marionetas únicas e canções satíricas e foram fundadores do Turnabout Theater, uma verdadeira instituição de Hollywood. Entre os seus fãs e espectadores estavam Greta Garbo, Charlie Chaplin, Albert Einstein, para além de muitos outros. Mais do que um documentário sobre estes três homens e a sua carreira de cinquenta anos como artistas e marionetistas, é uma celebração da diversidade e da vontade de fazerem o que queriam. O próprio Dan Bessie, sobrinho de um destes artistas, fez a sua carreira em Hollywood e no campo da animação trabalhou nos estúdios da MGM e em desenhos animados históricos como “Tom & Jerry”, “Spiderman” ou “Mr. McGoo“.
Sugira-me um espaço imperdível para visitar em Lisboa e faça-me uma sugestão de uma tarde perfeita nesta cidade.
Dado o contexto da entrevista gostaria de referir uma visita ao Convento das Bernardas, na Madragoa, onde fica o Museu da Marioneta e ao nosso espaço, o CAMa - Centro de Artes da Marioneta.
Uma tarde perfeita em Lisboa é um dia cheio de sol e caminhar para descobrir os recantos mágicos. Um percurso de esplanadas e de várias visões sobre a nossa cidade. O início… Miradouro de Nossa Senhora do Monte, parar depois alguns momentos no Café do Monte e seguir até à esplanada da Igreja da Graça, descer novamente até Alfama e parar na Igreja de Santo Estevão e contemplar Lisboa. Ler um bocado e seguir viagem na direcção da Madragoa, é sempre a descer, passar a Baixa, seguir pelo rio, virar e seguir pela rua de São Paulo, chegar à rua da Esperança, fazer uma visita ao Convento e passar pela rua das Janelas Verdes até à esplanada Le Chat, finalmente repousar e ver o pôr-do-sol na companhia dos muitos amigos que entretanto chegam acompanhado de um copo bem fresco de vinho verde.
O que é Lisboa, o que lhe oferece e o que o emociona nesta cidade.
Embora tenha nascido na Guarda, já vivi mais tempo em Lisboa e considero-a a minha cidade. Encanta-me a luz, sobretudo a luz e o horizonte, o poder chegar a certos recantos e ter uma vista deslumbrante sobre o rio, este rio imenso. Lisboa emociona-me e entristece-me ao ver o potencial que poderia ter, quando vejo todos estes edifícios degradados, gosto de imaginá-los cheios de artistas.
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