O autor do novo «’A’ Maiúsculo com Círculo à Volta», respondeu às perguntas de Pedro Tavares na primeira das Tertúlias Jazz organizadas em parceria pela Rua de Baixo e pela Le Cool Lisboa. A Jazz.pt associou-se à iniciativa, publicando em simultâneo, com as duas revistas online, a conversa decorrida ao vivo no Cinema City Classic Alvalade, em Lisboa.
texto Pedro Tavares
fotografia Nuno Martins
Com 29 anos de actividade repartida entre o jornalismo cultural, a crítica de música e o ensaísmo teórico, Rui Eduardo Paes é autor de vários livros sobre as músicas criativas, abrangendo o leque de tendências que vai desde o avant-jazz até à música experimental, passando pelo rock alternativo, a new music e as músicas contemporânea, improvisada e electrónica.
É o editor da Jazz.pt, projecto que transitou para a Internet depois de o ter coordenado durante seis anos de edições em papel. É membro da direcção da associação Granular, dedicada à promoção do experimentalismo na música e nas artes audiovisuais e performativas portuguesas. Vem colaborando com instituições conceituadas, tais como a Fundação de Serralves, a Fundação Calouste Gulbenkian, a Culturgest e a Casa da Música, bem como com a editora discográfica Clean Feed.
Foi um dos fundadores da Bolsa Ernesto de Sousa, durante 20 anos tendo sido membro permanente do seu júri, em representação da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Assessorou a direcção do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian e integrou o júri do concurso de apoios sustentados do então Instituto das Artes do Ministério da Cultura, para o quadriénio 2005-2008. A conversa com Pedro Tavares ocorreu na altura do lançamento do novo livro de REP, «’A’ Maiúsculo com Círculo à Volta», e pouco depois de o anterior, «Bestiário Ilustríssimo», saído em 2012, ter tido uma segunda edição. No Cinema City Classic Alvalade, em Lisboa, perante uma plateia bem preenchida e com transmissão em directo pela Rádio Zero, falou-se destas duas obras, mas também sobre jazz, a Jazz.pt, a Granular, o blogue Bitaites…
Pedro Tavares : Embora actualmente escrevas mais sobre as músicas experimental e improvisada, a tua ligação ao jazz é antes de mais diária, mas também o é de sempre, certo?
Rui Eduardo Paes : Certo. Acho que a influência do jazz na minha actividade e na minha vida tem um ascendente, digamos assim. Era a música que se ouvia em casa quando era pequeno. O meu pai era e é um entusiasta de todo o tipo de jazz. Ouve todas as tendências, incluindo as mais contemporâneas, e foi assim que me educou: a ouvir jazz todos os dias. Uma vez que é o tipo de música que mais fui ouvindo ao longo da vida, natural seria que dedicasse alguma atenção ao jazz. De maneira que aparecer como editor da Jazz.pt é uma consequência disso.
Como é possível viver-se da escrita da música em Portugal?
Não é possível, de todo. Durante uns 20 anos fui escrevendo sobre música porque tinha um emprego ora na área do jornalismo, ora em estruturas culturais. Tinha o suporte do ordenado mensal, que me permitia escrever sobre música nos tempos livres, ou seja, à noite, aos fins-de-semana, nos feriados e nas férias. Às vezes, tratava de assuntos que tinham que ver com esse trabalho nas redacções por onde passei: e-mails que recebia e aos quais era necessário responder, pedidos de entrevistas etc. Em 2005 ou 2006 achei que estavam finalmente reunidas as condições para me dedicar só à música, não só escrevendo como também fazendo outras coisas. Durante uns dois ou três anos foi possível viver assim, mas depois tornou-se impraticável.
Continuo a fazer isso hoje a tempo inteiro, mas com consequências a nível financeiro que me têm obrigado, com demasiada frequência, a admitir a possibilidade de, pura e simplesmente, deixar de ter esta actividade. Vou resistindo, vou lutando contra isso. Vamos ver o que é que acontece daqui para a frente. As coisas pioraram muito nestes últimos anos devido à crise e às políticas de austeridade implementadas que, como sabem, têm como primeira vítima a cultura, por isso vamos ver o que acontece. Pode ser que daqui a um ano eu esteja a fazer a mesma coisa, pode ser que não, pode ser que nem sequer ande por cá, logo se vê.
Como é que lidas com a imparcialidade na crítica, uma vez que neste mundo tão pequeno como é o português, quase sempre se conhecem as pessoas sobre as quais estamos a falar?
Tenho uma postura muito objectiva em relação a esse assunto, que é a seguinte: considero que desempenho um serviço público, ou melhor, um serviço comunitário. Aquilo que faço destina-se aos ouvintes, aos músicos, a todos aqueles que lidam com estas músicas, sejam eles editores, produtores, directores artísticos, etc. E isto significa que as pessoas com quem convivo são estas. E eles sabem que o facto de serem meus amigos, e estão aqui vários presentes, não implica que, se fizerem um concerto ou um disco mau, eu elogie o que ouvi. Se é mau, eu escrevo que é mau. Eles sabem que é assim e respeitam isso. Regra geral.
Foste e és editor da Jazz.pt desde o seu início. Seis anos de edições em papel que culminaram no seu encerramento. O país é pequeno, como já foi aqui referido, e o universo do jazz é ainda mais reduzido. A prova disso é que publicações anteriores tiveram sempre um tempo de vida muito curto. Na tua opinião, o que contribuiu para que a Jazz.pt se tivesse mantido no mercado durante tanto tempo?
E que se mantenha por muitos mais anos! Por duas ordens de razões: a primeira, por teimosia, e diria mesmo mais, por casmurrice, e a segunda por loucura. Somos todos uns doidos varridos e uns casmurros que lutam contra todas as adversidades, porque nada disto é sustentável. Continuamos a fazê-lo, no entanto. Não faz sentido, mas continuamos.
O que mudou na Jazz.pt com o site e porque não se explorou este formato há mais tempo, sabendo quão caros eram a impressão em papel e o design?
As pessoas, regra geral, têm uma ligação particular com o objecto, com algo que se possa manusear, neste caso uma revista. Eu próprio tenho esse gosto de mexer no papel. Gosto de livros, de revistas e de jornais. E as pessoas preferem, ou preferiam até recentemente, que a Jazz.pt fosse uma revista. Deixou de ser porque tornou-se incomportável mantê-la. Os prejuízos eram enormes e somavam-se de número para número e, de facto, a Internet tornou-se a única alternativa possível. Também tem custos, obviamente, mas são mais suportáveis. Falámos várias vezes em ter um site da revista como complemento do papel, mas isso não foi para a frente. Substituímo-la agora, pronto. Está feito.
E quais as primeiras impressões desta nova fase da Jazz.pt?
As impressões que eu tenho são as de que a Jazz.pt é agora lida por um público maior. Em termos de visitas únicas, somam-se já a muitos, muitos milhares de visitas que o site teve e isso significa que muito mais gente está a acompanhar os artigos, as entrevistas, as críticas que publicamos, o que não acontecia antes.
O jazz nasce no início do século XX nos Estados Unidos. Hoje em dia, mais do que nunca, faz parte do nosso vocabulário, mas talvez muita gente não saiba a origem da palavra. O que significa «Jazz»?
Há várias teorias, pelo menos umas três ou quatro. Mas acabam todas por redundar numa de que gosto particularmente e que considero ser a mais próxima da verdade. Jazz é uma corruptela do verbo «to jass», que quer dizer, na gíria americana, fornicar. Portanto, é uma música de fornicação. A origem é essa. (risos)
Quais são as diferenças entre jazz e música improvisada, sem esquecer que o jazz é antes do mais improvisação?
A grande diferença entre jazz e música improvisada é que, regra geral, o jazz é tocado com base num tema, numa estrutura, numa composição. E a música improvisada não. Mas isto é em geral, porque depois há diferenças, nuances, particularidades. Pode haver uma música integralmente improvisada segundo os cânones do jazz. Só para dar um exemplo português: Rodrigo Amado toca jazz, mas tudo aquilo é improvisado, não há partituras. E pode haver uma improvisação não jazz tocada com algum tipo de estrutura. Essas nuances vão-se multiplicando, mas em traços gerais as diferenças são estas.
Aquilo a que se chama música improvisada ou de improvisação livre é um conceito nascido na Europa dos anos 1960 que corresponde ao desejo de uma série de músicos, como Peter Brötzmann, Alexander von Schlippenbach, Evan Parker e outros, que entenderam que tocar jazz, o jazz americano propriamente dito, não fazia muito sentido, porque eram europeus. O jazz tinha que ver com uma realidade sociomusicológica particular, a dos negros americanos, e eles acharam que deviam tocar música europeia e que seria interessante cruzar as premissas do jazz, sobretudo do free jazz, com as da música erudita contemporânea.
O curioso é que a história da música improvisada nos mostra que, em muitos casos, esses músicos acabaram por regressar de alguma maneira ao jazz. E isso acontece precisamente com os nomes que apontei. O Schlippenbach a interpretar Thelonious Monk, o Brötzmann em colaborações com músicos de Chicago e o Evan Parker cada vez mais a denotar influências de John Coltrane. Mas tudo isto é muito relativo, não há fronteiras muito definidas, as coisas vão fluindo e ainda bem.
E precisamente sobre a música improvisada fala-nos das tuas propostas Way Out.
Ah, os discos? Isso já foi há muito tempo. Nos anos 90 a editora AnAnAnA, que já não existe, convidou-me a organizar dois volumes de uma compilação dedicada à música improvisada e experimental. Obviamente que com materiais inéditos. Convidei uma série de músicos nacionais para me prepararem temas e foi o que aconteceu. Não havia nenhuma linha definitória: eles podiam fazer aquilo que entendessem e foi assim que surgiram esses dois discos. Participaram grandes figuras dos dias de hoje: Rodrigo Amado, Manuel Mota, Rafael Toral, tantos.
A Associação Granular dedica-se à promoção do experimentalismo na música e nas artes audiovisuais e performativas portuguesas. Fala-nos da Granular e dos objectivos a que se propõe.
A Granular está com 10 anos e meio de existência e foi constituída em 2002 com o propósito de incentivar, divulgar e promover o experimentalismo na música e não só. Nas artes audiovisuais, vídeo por exemplo, e nas artes performativas, em muitos casos fazendo pontes entre as várias disciplinas artísticas, uma área em que nos especializámos. Durante uma série de anos trabalhámos sem qualquer tipo de apoios financeiros do Estado ou de outros. Realizávamos pequenos eventos, à bilheteira. Aquilo que era possível, sabendo quais são as condições de existência destas músicas em Portugal. Em 2009 conseguimos pela primeira vez um subsídio do Ministério da Cultura e tivemo-lo durante algum tempo, o que nos permitiu passar para uns patamares acima e fazer coisas mais arrojadas. Trazer músicos estrangeiros de referência para participações em festivais, ciclos etc., e colocarmos músicos nacionais em espaços mais nobres, «mais mediáticos». Um dos nossos propósitos estatutários é dar visibilidade a estas músicas e tirá-las do underground.
Nesse aspecto foi um trabalho muito compensador. Entretanto, no último concurso de plurianuais da Direcção-Geral das Artes foi decidido retirar o apoio à Granular. A programação que tínhamos para este ano e para o próximo deixou de ser viável, logo, limita-nos a fazer as coisas que estavam acordadas com os nossos parceiros, designadamente com a Culturgest e com o Goethe Institut. Tivemos uma instalação performance com João Parrinha. Houve um pequeno ciclo temático no Goethe Institut em Junho, o Der Destruktive Charakter, inspirado em Walter Benjamin. Fomos a Berlim para um último encontro do projecto europeu Opensound. Em Julho, haverá ainda uma iniciativa com Susana Mendes Silva e Abdul Moimême. Depois disso, não sei…
O resto daquilo que tínhamos programado não será possível fazer. Os argumentos do júri da Direcção-Geral das Artes para não nos dar o subsídio são anedóticos, são autênticas falácias. Penalizaram-nos com noções que contrariam aquilo que disseram e decidiram em anos anteriores, quando tínhamos vertentes de trabalho até menos sólidas. Por exemplo, entre o ano passado e este a Granular conseguiu uma grande implantação em outros países da Europa, mediante uma parceria com seis associações congéneres em países como Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Noruega e Itália. Um dos argumentos da DGA é o de que não temos difusão internacional suficiente. Quando a que tínhamos há uns anos, quando nos apoiou, era bastante menor.
Vê-se, pois, que são argumentos falsos, usados apenas como desculpa para não nos darem dinheiro. Enfim, o júri escolhido pela Direcção-Geral das Artes para Lisboa e Vale do Tejo foi constituído por pessoas da música clássica e uma da pop, que calha ser também o director editorial da revista Blitz e um director adjunto do Expresso, Miguel Cadete. Portanto, pessoas que não têm qualquer conhecimento do que é a música experimental, do que é a música de pesquisa. Decidiram sem conhecer o sector. É assim que se fazem as cousas, como dizia o Gil Vicente há uns séculos.
Agora, não sei se a Granular morre, se ficará a hibernar até melhor oportunidade. Vamos ver, mas isto significa uma valente machadada nestas áreas musicais em Portugal.
Voltando ao jazz, sei que leccionaste história do jazz até há bem pouco tempo. Fala-nos dessa experiência, o que representou para ti essa transmissão de conhecimentos. Gostas de ensinar?
Adoro ensinar. Aliás, desde os anos 90 que dedico uma parte da minha actividade à realização de conferências, seminários, aulas e acções com crianças, adolescentes e adultos. Dei aulas sobre música num curso de jornalismo e de crítica de música na ETIC, onde leccionava História do Jazz e História da Música Contemporânea. Mais recentemente, dei História do Jazz na Escola Superior de Artes e Tecnologia de Lisboa. Esta vertente pedagógica é-me extremamente importante.
Aliás, devo dizer que estou longe, hoje, de me considerar um jornalista. Digamos que sou um escritor que, na maior parte do tempo, pratica jornalismo e actividades de divulgação, pedagogia, promoção e curadoria, esta com a Granular. A minha acção multiplica-se em diversos tipos de intervenção que extravasam o jornalismo. O jornalismo é, apenas, a área a que dedico a maior parte do meu tempo, mas a partir de determinada altura comecei a deixar de entender que havia compartimentos em tudo o que faço. Para mim, também fazem parte do tal serviço comunitário e público que desempenho. Intervenho onde sou necessário.
Na tua opinião, como vês a evolução do jazz no nosso país nos últimos 30 anos?
Se me perguntasses isso há dois anos, eu falar-te-ia de um boom... O fenómeno do jazz e das músicas criativas em Portugal estava na altura no auge: havia cada vez mais músicos a tocar, cada vez mais bons músicos e cada vez mais discos, cada vez mais concertos. E tanto assim era que a imprensa internacional e os melómanos de outros países começaram a reparar que havia uma realidade musical muito particular em Portugal. De facto, instalaram-se uma grande dinâmica, uma grande energia e muita qualidade no nosso país.
Porém, se as coisas assim se mantêm, os constrangimentos que temos estado a viver ultimamente estão a prejudicar a força que havia e isso sente-se. Há menos concertos, menos condições para se tocar e, às vezes, não há mesmo condições nenhumas. Começa a tornar-se confrangedor e eu espero que isso não venha matar a música.
Escreves regularmente para um blogue, juntamente com o jornalista Marco Santos, designado por Bitaites, para pequenos e médios intelectuais. É um slogan provocador. O que pretendem com este blogue?
É um slogan provocatório. «Pequenos e médios intelectuais» é, enfim, uma brincadeira. Este blogue, tal como todos os demais, não pretende fazer jornalismo. O que escrevemos são devaneios, são bitaites, movidos apenas pelo que nos apetece escrever... E eu no Bitaites escrevo sobre tudo. Sobre música, claro, mas com um tipo de abordagem que não utilizo na Jazz.pt ou em outro meio de comunicação. Os textos são mais pessoais, mais subjectivos. O eu está mais presente, que é uma coisa que no jornalismo não é conveniente. Digamos que serve para dizer algo como: olha, gosto muito da música deste vídeo. E permite-me também escrever sobre outras coisas, porque escrever só sobre música cansa, não é? De vez em quando escrevo sobre outros temas. Sexo, por exemplo.
Como no texto sobre PJ Harvey?
Exactamente! Mas aí era música e sexo. Às vezes escrevo só sobre sexo. Ou sobre literatura, ou sobre, sei lá, dança. Mas o tema «música e sexo» anda a interessar-me muito. Um dos últimos textos que publiquei no Bitaites foi sobre a pila do Iggy Pop.
Está respondido?
(Risos)
Lançaste cinco livros, «Ruínas», «A Orelha Perdida de Van Gogh», «Cyber Parker», «Phonomaton» e «Stravinsky Morreu», editados pela editora já desaparecida Hugin. Há pouco mais de um ano, publicaste «Bestiário Ilustríssimo», editado pela Chili Com Carne, e que recentemente teve uma segunda edição. Agora saiu «’A’” Maiúsculo com Círculo à Volta«. Mais concretamente sobre o «Bestiário Ilustríssimo», gostava de te colocar algumas questões.
Este livro é um mostruário de monstros da música, uma obra que reflecte sobre as músicas da actualidade e as suas infinitas conexões. É um livro que teve origem em textos reciclados, publicados anteriormente noutros contextos. Como foram o processo, os critérios de selecção dos textos e quais as temáticas abordadas?
Ora bem, há muitas coisas a dizer sobre isso. Resolvi fazer o livro com base numa reciclagem de textos porque, em primeiro lugar, gosto de reciclar textos. Acho que um texto nunca está acabado e tenho particular gosto em pegar em prosas que escrevi há anos e levá-las para outras leituras, para outras consequências, dando-lhes uma nova vida. Em segundo lugar, porque estive nove anos sem editar e nove anos é muito tempo. A minha editora, a Hugin, faliu e eu, de repente, fiquei sem saber onde é que os meus livros paravam, se estavam nas lojas ou em alfarrabistas. Volta e meia ia sabendo que apareciam nas feiras do livro do metro e em sítios assim. Portanto, senti a necessidade de fazer uma ligação com o passado, de conectar o novo livro com os anteriores e dar uma unidade ao meu percurso como autor.
Havia da minha parte a vontade de fazer algo que fosse uma espécie de enciclopédia, mas não sendo uma enciclopédia propriamente dita. Tenho um bocado de horror a formatos estanques, e daí que a minha escrita seja híbrida. Não é jornalismo, mas também não é musicologia. Foi o que pretendi fazer com este livro. Uma sucessão de textos, sem ordenação alfabética, que funcionassem como “retratos” de músicos de que gosto. E de músicos cuja obra me permitisse desenvolver as minhas ideias relativamente às ligações da música com a filosofia, com a sociologia e com as outras artes. Interesso-me muito pela arte “intermedia”, pela performance e pela dança. Aliás, nos anos 80 escrevi muito sobre dança e performance-arte. Foi tudo isso que resultou no “Bestiário Ilustríssimo”.
Sobre as infinitas conexões, são particularmente interessantes as que fazes com a arte, porque como dizes no capitulo 11, «Retro Inovadores», e passo a citar «A arte é uma reacção à realidade em que vivemos«. Explica-me de que forma as correntes referidas por ti, da noise music ao reducionismo, representam um confronto com a realidade em que vivemos. O que é isso de reagir?
Pois, isso é um conceito do Marcuse. Sim, a arte é uma reacção ao quotidiano, à realidade de todos os dias. O reducionismo e o noise são os dois extremos opostos desta questão. Se deres atenção ao ambiente áudio de uma cidade como Lisboa, reparas que há um nível de ruído que está constantemente presente, ou quase. E a música como é que reage a isso? Reage para cima e para baixo. Quando reage para cima, temos Luís Lopes com a guitarra noise, e quando reage para baixo, temos Ernesto Rodrigues com a viola quase a não se conseguir ouvir. Isto é, ou toca-se a um nível sonoro mais elevado do que o barulho da cidade, para a calar, ou toca-se a um nível sonoro que ignora a cidade.
No capítulo 21 do «Bestiário Ilustríssimo» falas sobre o dadaísmo e afirmas que os postulados Dada foram adoptados pelas práticas musicais vanguardistas e pós-vanguardistas, algo que se manteve até aos dias de hoje.
De que forma crês que o dadaísmo influenciou a música de vanguarda e a actual?
Podemos ter duas leituras do dadaísmo. Ou é apenas uma influência vanguardista vinda do início do século XX, ou trata-se de algo que continua vivo. Eu considero que continua vivo. Estas práticas musicais são dadaístas ou uma consequência dessa tendência. Lembro-me que, aqui há uns anos, quando fiz uma conferência na Faculdade de Belas Artes de Lisboa sobre o dadaísmo e suas influências na actualidade, abri a minha intervenção com um tema de Maja Ratkje em que a ouvimos aos berros e depois a processar os gritos electronicamente. A peça é ensurdecedora, violentíssima, ultrapassando tudo o que o metal e o punk fizeram.
Iniciei a minha palestra com aquilo, interrompi de repente e disse «boa tarde!». As pessoas desataram-se todas a rir. Aquilo foi um acto dadaísta. Depois fui falando de vários exemplos do dadaísmo propriamente dito, que até não teve grande expressão musical, e apresentei exemplos da actualidade que continuavam as premissas dos dadaístas no início do século XX.
Sobre o teu mais recente trabalho, «’A’” Maiúsculo com Círculo à Volta», o que nos podes desvendar desse novo livro. De que se trata exactamente?
O título «’A’” Maiúsculo com Círculo à Volta» permite que a capa seja apenas uma figura, um ‘A’ maiúsculo com círculo à volta. E o ‘A’ com círculo à volta é o ‘A’ de anarquia. Este é o meu livro anarquista. Há coisa de um ano coloquei duas hipóteses: ou fundava uma organização de guerrilha urbana, o que poderia ser perigoso para mim (risos), ou aprofundava uma série de conhecimentos sobre o pensamento anarquista e libertário, sobretudo o mais recente, que é extremamente rico. Investiguei alguns nomes que ainda não conhecia de autores mais recentes, muitos deles, curiosamente, americanos, e encontrei um mundo fascinante.
A ideia de que parti para este projecto foi: ok, quando estamos a falar de algum jazz e de improvisação refere-se o impulso libertário, a influência anárquica. O meu desafio foi verificar no que é que isso consistia realmente. Há também aquela conotação que se faz entre o punk e a anarquia, às vezes abusivamente, porque há muito punk que não tem nada que ver com anarquismo. Mas achei que havia ali um tema, uma possibilidade de equação, música e anarquia, e foi isso que me propus explorar. O que daí resulta é este livro com ilustrações de 11 artistas ligados à Chili Com Carne. É um livro provocatório e louco, por vezes humorístico, ainda que com alguma acidez.
Tanto o «Bestiário Ilustríssimo» como o «’A’” Maiúsculo com Círculo à Volta» são complementados por ilustrações. Porque razão fazes questão de utilizar este recurso nos teus livros?
É simples. Porque sou fã das artes visuais, da banda desenhada, do cartoonismo, da ilustração.
E já que falamos de livros e de ilustrações, fala-nos de um livro que gostavas de ter editado, o «Senso» com Carlos «Zíngaro».
Esse foi, infelizmente, um livro que ficou na gaveta. O «Senso», que era um livro mais literário do que propriamente ensaístico, amplamente ilustrado pelo Carlos «Zíngaro», estava para ser editado pela Hugin. Há dez anos fui bater à porta da editora com o livro já paginado e não estava lá ninguém. Liguei para lá e não me atenderam. Sendo que, um mês antes, eu tinha falado com os editores para definir os últimos pormenores relativos à publicação. Naquele espaço de um mês, a Hugin faliu e fechou. E eles esqueceram-se de me dizer fosse o que fosse, o que, enfim, é lamentável. Fiquei com o livro na mão.
Contactei então cerca de 30 editoras, mas o facto de o livro ser um quadrado constituía um problema. Implicava um corte de papel caro. Houve duas ou três que se interessaram, mas também declinaram depois de fazerem as contas, pelo que o objecto ficou a apanhar pó lá em casa. Poderás perguntar, então porque é que não publicaste esse livro em vez do «Bestiário Ilustríssimo»? Bom, porque entretanto já não me reconheci em alguns dos textos e achei que tinha de aparecer com uma coisa nova, em vez de voltar 10 anos atrás.
Estará a precisar de uma reciclagem?
Um desses textos aparece no «Bestiário» e outros desse livro vão aparecer no segundo volume, que se tudo correr bem será publicado em 2014. Por exemplo, 40 partituras em prosa para violino e grupos de corda à maneira do Fluxus e de Yoko Ono.
Para terminar, quando é que te vais dedicar à música barroca?
A música barroca é uma das minhas paixões. Aliás, estudei flauta barroca com um professor privado, o Hélio. Encontrei-o ontem, já não o via há imenso tempo. Tive de desistir porque, enfim, não tinha tempo para tudo. Ao mesmo tempo que estava a estudar flauta barroca, comecei a usar flautas de bambu, madeira e cana e a tocar uma mistura de blues, rock, jazz, música árabe e música indiana. Uma coisa estranha, com intervalos curtos, multifónicos, harmónicos.
Aqui há tempos o Bruno Parrinha ofereceu-me uma flauta de bambu e voltei a dar uns toques outra vez. A música barroca é algo que ouço frequentemente, mas não me atrevo a escrever sobre ela porque, enfim, não dá para escrever sobre tudo.
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* Originalmente publicada a 12 de Julho de 2013, na Le Cool Lisboa * 400