Le Entrevista a Sara Paço por NunoT

Sara Paço chega a Lisboa vinda de Ohio, onde cresceu com o Blues e Soul americanos dos anos 50 a entrar-lhe nas veias desde a mais tenra idade. Não é verdade mas podia ser, porque Sara Paço, geneticamente filha de Lisboa, foi totalmente possuída pela alma blues de algum espírito que por estas bandas pairava quando ela nasceu, em 1987.

Em palco apresenta-se (sempre) a solo. Nos braços uma guitarra vermelha (estilo anos 50) que toca geralmente suave com dedilhados ou harpejos simples mas eficazes. Na garganta uma das mais invejáveis vozes que se pode ouvir pelo país fora, com afinação, expressividade, e garra que surpreende o seu habitat físico, o corpo de uma moça alta e magra de 25 anos. Surpreendente. Mas há mais, é que para além do seu claro dote natural vocal, Sara Paço revela-se igualmente detentora de uma excelente capacidade criativa musical.

No seu myspace podem escutar vários originais de composição totalmente sua, por entre a cover de "Moon River" e "Don't Cry For Louie" interpretadas com arranjos originais suficientemente bem compostos para receberem os aplausos dos seus autores e longa lista de intérpretes que até hoje interpretaram estes mesmos clássicos. Sara Paço tem tudo para vencer aqui, na América (sonho plausível, sobretudo depois do exemplo dado pelos veteranos e conterrâneos Dead Combo) e no resto do mundo.

Quem é, de quando e de onde vem Sara Paço? Fala-nos um pouco da tua história e da pessoa por detrás da cantora e autora.

A Sara Paço é uma rapariga sorridente que por onde passa espalha amor e alegria. De guitarra na mão e areia nos pés. Nos olhos verdes uma canção, nas ondas dos cabelos poesia e nas mãos o coração. É assim que vejo o meu reflexo no espelho salgado. Bem Sara, menos... vamos a isto. Eu sou eu. Não há ninguém igual a mim e se me vierem imitar cuidado que tenho mau feitio. Hahaha. Não, agora é a sério. A Sara veio da barriga da mãe... toda a gente sabe. Lá estava-se bem... uma barriga musical. Os pais faziam a festa à espera que nascesse e ouviam música a toda a hora. Aos seis anos não tiveram alternativa e colocaram-me no coro porque andava sempre a cantar. Aos 12 anos comecei a escrever poesia e aos 17 os meus pais ofereceram-me uma guitarra quando tudo o que queria era uma mota. Mas assim que vi a guitarra foi amor à primeira vista, como se tivesse encontrado uma metade de mim. No mês seguinte compus a minha primeira canção. E depois desta vieram 80 e tal até à data.

Licenciei-me em economia pelo ISEG e fui estagiar na Irlanda. Dei concertos em Dublin e ganhei amigos e fãs Irlandeses. Toquei nas ruas. Trabalhei em part-time numa grande venue “The Academy” a limpar casas de banho e a parte mais difícil era ver os músicos a passar carregados com instrumentos para fazer o soundcheck e eu de esfregona na mão a desejar do fundo do coração saltar para o palco e cantar. Viajei para Londres onde me apaixonei pelo Thames e fui assaltada. Aí fiz amigos maravilhosos e regressei duas vezes. Sou aquela que escreveu canções à janela em Dublin “Plastic Flowers” e num autocarro a caminho de Portobello Market “Portobello Road”.

Andei tanto a pé que gastei a sola das botas num mês e fiquei com calos nas mãos de carregar a guitarra comigo para todo o lado. Trilhei pelos caminhos mais incríveis e sinuosos sem nunca perder o rumo. Iluminada pela minha fé, confiança, amor e empenho, cheguei hoje a vocês e a todos os que me lêem. Amanhã será o mundo.

Quando foi e como foi que na tua vida entrou a música que se viria a transformar numa carreira?

Foi quando o meu coração bateu pela primeira vez, quando me nasceu o primeiro dente, quando aprendi a andar de bicicleta. A música já estava em mim. Gravada no meu ADN. Houve um período da minha vida quando tinha 17, 18 anos e estava na faculdade, não sabia bem o que haveria de ser, se economista, se musica. Isso angustiava-me. Ao mesmo tempo que trabalhava em part-time no McDonalds no Colombo e dava concertos para ajudar a pagar as propinas as coisas pareciam muito difusas mas o destino ajudou-me a escolher quando fiz o meu estágio num banco e me proibiram de dar concertos. Nunca até então tinha vivido sem música e foram os meses mais difíceis. Perdi a cor, a alegria de viver e caí doente com anemia. Foi só despedir-me e voltar a ter uma vida própria que me curei e voltei a ser eu, em vez de um robot programado para trabalhar 12 horas por dia, comer em 15 minutos e apresentar resultados. Mas não foi fácil. Imaginemos uma balança. De um lado um trabalho seguro e promissor, uma vida estável e sem sal. Do outro a música, altos e baixos, incertezas, um part-time nas limpezas e um coração corajoso. Já adivinharam o que escolhi!

Sobre a música de Sara Paço.

É diferente, original, refrescante. Quem ouve “sings along”. É como uma receita. Numa taça peneira-se o blues, junta-se o soul e uma pitada de jazz. Envolve-se tudo muito bem. Não esquecer a guitarra, prancha de surf e o anjo da guarda. Tudo com muito amor. Simples!

Porquê este blues com soul? O que gerou esta tua escolha musical na vida?

Porque é que tens olhos castanhos? Foi inevitável. Dei por mim a cair na cama a ouvir Ray Charles e acordar com Nat King Cole. Enquanto estudava para os exames ouvia Memphis Minnie, T Bone Walker, Louis Armstrong e tantos outros. Mas não me ficava só por este universo. Gosto de música clássica. Sou apaixonada por Chopin. A música Celta sempre me encantou mesmo antes de sequer desconfiar que iria viver na Irlanda. Ouvi e oiço muita música e isso é como uma construção. São os tijolos. Mas a estrutura tem de estar lá para a casa não cair. A essência. Acho que não fui eu que escolhi o blues e soul mas sim “eles” me escolheram a mim e não posso estar mais feliz com isso.

Descobriste que a tua voz era talhada para este género, ou achas que a foste / se foi moldando pela música que ouvias e procuravas? Fui abençoada com uma voz grave e potente. Ideal para estes géneros. Mas a voz é como o nosso inteleto. Eu fui alimentando-a a blues, soul e jazz e ela foi crescendo e evoluindo nesse sentido.

Como se desenvolve o teu processo criativo? Letra primeiro ou as palavras vão rolando sobre a música num ensaio?

É como calha. Por vezes faço as melodias primeiro e as letras vêem depois. Às vezes é ao contrário. Mas o mais comum é fazer tudo em simultâneo. Letra e música. Passo a passo. Acorde a acorde. Às vezes faço uma música completa em meia hora. Outras vezes demoro 2, 3, 4 horas. Nunca gosto de parar quando começo. Nem para beber água ... e o mundo pode cair que não paro enquanto a musica não nasce. Costumo chamar-lhes “my babies”. E quando estão cá fora quero mostrá-los ao mundo inteiro. Olhar, escutar e contemplá-los sem me cansar porque são as coisas mais lindas do mundo. Mas às vezes não consigo acabar e gravo no laptop ou telemóvel. E aí ficam à espera de serem terminadas. À espera da inspiração.

E as tuas letras? Onde te inspiras?

Em tudo. Na vida, No dia a dia. Na paisagem. No amor. Nas pessoas. Muitas vezes as pessoas pensam que um músico escreve só sobre o que aconteceu. Mas acontece que dou por mim a escrever sobre o que poderia ter sido, invento histórias, crio personagens. É esse o encanto. Mas é claro que há canções que fogem a esta magia do sonho e espelham a realidade tal como ela é. Como por exemplo o meu original “Liberia”, o qual escrevi depois de ver um documentário sobre este país que me tocou e entristeceu muito. Tudo serve de inspiração e adoro fugir ao óbvio.

Escolheste a guitarra como tua exclusiva parceira de palco. Foi o instrumento que achaste mais adequado ao teu género ou já tocavas antes de cantar?

A guitarra não é um instrumento para mim. É como se fosse uma pessoa muito especial. Tem nome, tem personalidade, tem história e conhece-me melhor que ninguém. Viajou comigo para Dublin e Londres, e foi ao meu lado no avião. Tive de pagar bilhete para a guitarra como se fosse uma pessoa mas jamais a enviaria no porão. Não deixo que ninguém toque nela. Que posso fazer? Sou possessiva com tudo o que amo. Mas não. A guitarra veio depois do canto mas é um amor incondicional e sem ela sinto-me incompleta.

E como encontraste a tua guitarra? Foi amor à primeira vista?

Neste momento tenho uma Ibanez elétrica mas quando a comprei ia para trazer uma Gretsch hollow body white. Mas a Rita (nome da guitarra) estava lá. Dourada e encantadora. Pedi para experimentar and yes... it was “love for the first sight”. Mas a Gretsch não me escapa da próxima vez.

E o Surf, chegou antes ou depois da música?

O surf entrou na minha vida como um presente. Estava eu a estudar para os exames em casa e os meus amigos todos na praia. Estava concentrada quando na rádio passou um spot a dizer “Queres ganhar 4 dias nas Billabong Girls em Carcavelos, aulas de surf, estadia em hotel quatro estrelas, fato e prancha? Envia uma frase...” Liguei o computador e enviei a minha frase. E esqueci-me daquilo. Passado uns dias estava a estudar e ligaram da rádio a dizer que tinha ganho. Foram as melhores férias de sempre. Descobri que tinha jeito e que o surf é o desporto mais maravilhoso que alguma vez experimentei. E em cima da prancha pela primeira vez pude ver um mundo diferente e inteiramente novo. Adorei a sensação à noite de sentir o colchão balançar como ondas no mar. Nunca mais quis outra coisa.

Qual (onde foi e quando) o teu melhor concerto? E o pior? O que tiveram de especial?

Os melhores concertos foram em Londres em Chelsea Bridge, em Lisboa no Chapitô em em Cascais no “European HOG rally 2012”. O primeiro pela viagem, pelas condições de som, pela plateia e pelo glamour. O segundo pelo magnífico público, som e great atmosphere. O último por ter sido especial. Foi maravilhoso ver os motards a dançarem ao meu som. Três crianças vieram ao palco enquanto estava a cantar para me darem beijinhos. Foi enternecedor e engraçado porque tudo parecia ir correr mal uma vez que foi o pior soundcheck de sempre. O equipamento falhou e estive mesmo para não tocar. Mas depois tudo acabou por solucionar-se e foi maravilhoso.

O pior foi em Dublin no “Panama”. Depois de quase duas horas a cantar, o dono do bar chegou e quando me viu a arrumar o som disse arrogantemente “que estás a fazer? Volta a montar e a tocar porque ainda não te ouvi”. O meu sangue ferveu e disse-lhe uma série de verdades na cara. Saí para uma noite fria e percorri o caminho de volta a casa com o coração pesado e lágrimas nos olhos. Pela O'Connell Street, carregada, e o céu escuro salpicado de estrelas... o sentimento de ser pequena. Demasiado pequena num mundo cruel.

Qual foi o primeiro disco que compraste?

A verdade é que nunca comprei um disco. Os meus pais têm uma verdadeira colecção de CD e vinis. E a música foi sempre uma partilha entre amigos “Emprestas-me este CD? Olha vê se queres algum dos meus?” E depois há toda aquela questão do computador. Mas a minha irmã ofereceu-me um CD da Shania Twain quando tinha 11 anos e foi um presente marcante porque na altura era tudo o que eu queria.

Qual a tua banda/produtor e tema preferido atualmente, e qual a banda/produtor e tema preferido de sempre (internacional e português)?

Sou louca pelo Ray Charles, Louis Armstrong, Memphis Minnie, Frank Sinatra, Billy Holiday, Vaya com Dios... oh tantos e há tantas músicas que gosto. No momento tenho cantado muito “Gotta make a change blues” de Memphis Minnie. Em Portugal admiro Jorge Palma pelo seu percurso, pelas letras e pela musicalidade. Adoro “Deixa-me rir”.

Melhor disco de sempre (internacional e português)?

Nat King Cole “Body and Soul”e Jorge Palma “Voo Nocturno”.

Melhor guitarrista de sempre? (Sugere um tema)

T Bone Walker. “Don't throw your love on me so strong” é uma daquelas músicas que posso ouvir over and over again sem me cansar. A guitarra é absolutamente fenomenal.

Melhor baterista de sempre? (Sugere um tema)

Max Roach sem dúvida. Um génio da bateria.

Melhores vozes masculina e feminina de sempre? (Sugere um tema)

Screamin' Jay Hawkins e Dani Klein. “I put a Spell on you” the Screamin' Jay Hawkins. Maravilhoso!

Como é fazer música em Portugal no auge (esperemos) da crise que assola o país em pleno 2012? E lá fora achas que seria melhor?

Já Bessie Smith dizia “Nobody knows you when you're down and out” no auge da great depression. Acho que são nas piores alturas da vida que se compõem as grandes obras porque a dificuldade faz com que procuremos na arte um escape para as nossas tristezas. Sem dúvida de que lá fora os músicos são mais respeitados e há mais oportunidades. Em Portugal as pessoas estão a alargar horizontes e noto que há muita carência de boa música. Os portugueses estão fartos de Pimba e querem mais, música com qualidade.

Mas o mercado musical não existe em Portugal. As Editoras não fazem nada, não investem, não criam nem geram valor. Ficam sentadas à espera de melhores dias. Não é assim que se trabalha nem se atinge objetivos. Vivemos num país em que se dá mais valor aos carros, casas e aparência do que à cultura. Um país que esquece e negligencia uma grande potencial artístico. Não só a nível musical mas também no cinema, nas artes plásticas etc. É preciso brilhar lá fora para sermos reconhecidos em Portugal.

Onde gostavas de fazer o teu concerto em 2028 de título "Sara Paço - 20 anos e uma guitarra"? E se pudesses, quem gostarias de convidar ao palco a tocar/cantar um tema contigo?

Gostava de fazer esse concerto na “Times Square” e gostava de convidar ao palco um músico que conheci recentemente e que me maravilhou por ser um grande médico, um grande cantor e compositor com um estilo único e diferente. É maravilhoso ver que a música atravessa profissões, extratos sociais, raças e credos. Mas quando há talento... ele está lá, indiscutível! O nome: Miguel Stanley.

Qual é a melhor sala/espaço de concertos de Lisboa? E do país?

Acho que o Coliseu de Lisboa e também o do Porto, bem como o Pavilhão Atlântico são os melhores. O nosso país é rico em beleza e não faltam por aí palcos lindos e cheios de história. Só falta mesmo iniciativas para os pôr a render.

Qual é o teu local preferido em Lisboa (de noite e de dia) e qual é o teu canto secreto na cidade do Sol?

Sou apaixonada pelo Castelo de São Jorge e um passeio à beira rio não podia ser mais maravilhoso.
À noite, Santos, Alfama e Bairro Alto.

Muito obrigado. E boa viagem de regresso até Ohio!

Obrigado eu! Adorei ser entrevistada por esta revista maravilhosa. E aproveito para vos agradecer esta oportunidade e também gostava de agradecer a todos os meus amigos e fãs que me acompanham todos os dias e me incentivam tão carinhosamente. Sem eles e os meus patrocinadores (Semente Surfboards, Chakra Gym, JC Hairstlylist, Extra Extra Surf e a grande White Clinic). Muito obrigada a todos!

>> Sara Paço atua a 23 agosto, às 22h em Cascais, nas Festas do Mar.

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* Originalmente publicada a 9 de Agosto de 2012, na Le Cool Lisboa * 352

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