Como surgiu o VJing na tua vida, quando decidiste que era isto que querias fazer?
Uma produtora em Coimbra, a Cosa Nostra, organizava festas, sobretudo techno, na área da electrónica e tinha residência num bar, na altura acho que era o Lounge.
Bom, um deles foi para Barcelona e o António, que era o Photaumatic, ficou sozinho e ele ia lá para casa, sexta-feira à tarde, preparar os vídeos e eu estava a cozinhar porque a malta costumava ir lá jantar à sexta-feira.
Inevitavelmente, enquanto a comida se fazia, sentava-me ao lado dele a ver como se editava vídeo, a fazer perguntas, e comecei a experimentar. Daí a começar a fazer coisas foi um saltinho. Comecei a ajudar o António, tive praticamente um ano em que preparava loops e ele depois é que fazia a parte da manipulação em tempo real, isto em 2006, se não me engano. Depois é que comecei a trabalhar muito mais na pesquisa de vídeos, o que é que pode ou não funcionar. Entretanto, houve uma festa grande e o António não lhe apetecia, acho que também se queria divertir e não queria estar a trabalhar. Eles disseram-me vem e fazes tu os vídeos. Foi o primeiro live do Júlio, e estreámo-nos os dois: ele a fazer o primeiro live de electrónica e eu a fazer o primeiro set de vídeo. A partir daí comecei a fazer regularmente. A Cosa Nostra ainda hoje organiza festas. Entretanto conheci o Afonso Macedo, DJ, também membro da Cosa Nostra, com quem entretanto criámos a Put Some e com quem trabalho desde 2007.
Normalmente o António era o VJ do Afonso, fazia mais ou menos as noites dele, e eu fazia mais as noites do David Rodrigues. E assim era uma forma de estarmos mais à vontade. Entretanto o António saiu e fiquei com o projecto Receyecler, que decidi manter e continuar até hoje. O António já saiu em 2008, há cinco anos. Tal como o nome indica, Receyecler refere-se à reciclagem, neste caso de vídeos. A reciclagem refere-se a um conceito teórico da comunicação que é muito utilizado, que é a «remediação». Tem muito a ver com o tempo em que vivemos, nós remediamos tudo. Na prática, parto do princípio de agarrar numa coisa que já existe e usá-la de outra forma, ou transformá-la noutra coisa.
Eu filmo poucas coisas, a maior parte das coisas de video jamming não são filmadas por mim. Eu filmo para lives, pré-preparados e que se pretende apresentar um projecto conjunto e não sou capaz de usar coisas que não sejam minhas, quando estou a trabalhar em projectos como o «Projectionist’s Nightmare», e coisas afins. E portanto, recicla-se a vários níveis. Primeiro, reciclo muito lixo que encontro. Normalmente vou sempre à procura de coisas com um tema ou com uma estética, dependendo da música ou do que eu quero fazer. Trabalho o material que encontro, edito, construo os loops e vejo o que é que consigo fazer com aquilo, que misturas podem ser feitas, sempre na perspectiva de conseguir chegar a uma estética ou linguagem pré-definida. Depois, ponho aquilo a dar na televisão e filmo, para ter aquele efeito granulado.
Tenho oito televisões em casa com efeitos diferentes e todas funcionam. Umas são Nacional,
dos anos 80, outras mais antigas ainda e outras mais recentes. Ou projecto na parede e volto a
filmar por cima com outras coisas. E depois há a forma como
misturamos, posso ter um set, e o mesmo set em noites diferentes posso misturar de maneiras
diferentes e esse já é outro nível de reciclagem. Por fim, muitas das vezes agarro nos vídeos
que já editei, já refilmei e refilmei e volto a refazer. Eram horas e horas de pesquisa.
Apanhávamos coisas e íamos reciclando e reciclando. Acontecia muitas vezes que, quando estávamos os dois a trabalhar e com vidas já bastante complicadas, muitas das
vezes entravamos na brincadeira, opá, vamos reciclar o que já temos. Então, mas já
reciclámos isso uma vez, mas reciclamos outra vez.
De reciclar em reciclar, acabou por ficar o
Receyecler. Esse espírito mantém-se. Portanto, ando sempre à rasca, sempre com falta de
tempo e sempre a reciclar.
E o que é remediação?
Nos tempos modernos, «remediação» parte do pressuposto que nós estamos
sempre a tentar remediar uma realidade que já existe. É um conceito enunciado no livro «
Remediation: Understanding New Media», de Jay Bolter e Richard Grusin, publicado em 2000.
Por exemplo, o cinema remedeia «a vida real», a televisão está a tentar remediar o cinema. É
uma forma de mediares uma realidade com outra. Por exemplo, no «Video Projection Mapping»,
a fachada do edifício vai servir duas funções: serve como tela para uma imagem de vídeo e
serve como ecrã porque emite. Neste caso a fachada está a remediar a tela de cinema, está a
reaproveitar. A reutilizar e a reciclar o conceito da tela de cinema nela própria e está a remediar o
conceito de ecrã nela própria.
Voltando ao colectivo Receyecler, tu trabalhas com a Joana…
Eu ao longo dos anos fui organizando workshops de VJ e sempre que surgiram pessoas
interessadas e interessantes, elas foram entrando para o colectivo, sempre neste espírito
também da partilha. Em conjunto funcionamos melhor do que separados e
também houve uma altura em que eu tinha demasiadas festas e não conseguia dar conta do
recado sozinha e tinha que ter malta comigo, que estivesse a aprender. O colectivo já foi maior,
tivemos o VJ André e o Jorge Ribeiro que entraram e entretanto saíram. O Jorge ainda nos dá
algum apoio técnico uma vez que é engenheiro informático. A Joana é ultra eficaz e eficiente,
acabou por descobrir que não gosta assim tanto de fazer manipulação em tempo real, portanto,
dá-me apoio muitas vezes na parte de corte, loops, e na preparação do material, e depois, o
que ela gosta mais de fazer e para o qual eu estou a tentar encaminhá-la mais, é a parte de marketing, que não está nada bem gerido.
E nos tempos que correm nós
precisamos de vender cada vez mais o nosso trabalho e a Joana agora está a trabalhar nisso,
tanto que está a tirar um mestrado em marketing e está a ficar mais com essa parte. Acho que
vai passar a ser ela a fazer toda a comunicação externa, porque não tenho tempo para tudo.
Apesar de agora a Receyecler ter acalmado por causa do meu mestrado. Como tinha aulas à
sexta e ao sábado tive que cortar a maior parte das noites no ano passado. A Joana faz
parte, colabora em quase tudo, embora não seja VJ.
É o único projecto em que te encontras envolvida, ou tens outras parcerias?
Tenho outras.
Com vídeo, tenho mais uma parceria que é o «Suspension of
Disbelief», projecto que nós criámos este Verão. Juntei-me com um fotógrafo, o Eduardo
Nascimento, que também está a acabar arquitectura e que tem um projecto, «Do Mal, o Menos»,
que é de fotografia de arquitectura e juntámo-nos para fazer uma vídeo instalação. E esse
projecto não é um projecto fechado, ou seja, fizemos o primeiro esboço este Verão e vamos
continuar. Isto porque ao longo dos anos, Receyecler não fez só video jamming. Comecei a ser
solicitada para outro tipo de colaborações e comecei a sentir que precisava de ter um
projecto paralelo, que está a nascer, a «Decollage», que trabalha sobretudo na criação de
ambientes de arquitectura e vídeo. Tudo o que seja palcos, sobretudo direccionado para teatro
e tudo o que seja layouts de festas e instalação vídeo na parte mais técnica, desenho de
instalação vídeo/conceito do ambiente todo dos espaços. E para além disso fiz o «Projectionist’s
Nightmare», com o Afonso Macedo (DJ) e a Margarida Cabral (performer).
Mas esse tipo de
projectos vão ter de ganhar uma personalidade própria porque não fazem muito sentido no
contexto de Receyecler. O «Projectionist’s Nightmare» foi um live film, é um filme de 45
minutos que é montado em tempo real. Isto foi um convite do MUCO em 2010. O Afonso
sugeriu um poema, que deu o título ao projecto, e que já tinha sido remediado numa música.
Agarrei no poema e na música, na altura o André ainda estava no colectivo, trabalhámos num
conceito e decidimos filmar. Falei com a Margarida, que é uma uma performer do CITAC
(Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), que trabalha na DEMO (Dispositivo Experimental Multidisciplinar e Orgânico).
Numa conversa com a Margarida disse-lhe, este poema, com este ambiente, com esta roupa mais ou menos, com este tipo de
maquilhagem, vamos fazer umas coisas. Mandei uns vídeos e umas coisas do género. A
Margarida viu, gostou, encontrou o vestido perfeito e fechámo-nos uma tarde inteira no CITAC
a filmar. Mais tarde disse-lhe, olha Margarida, eu não vou fazer uma coisa fechada, vou fazer
isto ao vivo. Isso é interessante. O Afonso prepara o set dele, a única
música fixa é a que se chama Projectionist’s Nightmare, do Deer, e eu não sei o que é que ele
vai fazer. E decidimos normalmente uns minutos antes quem é que começa e depois o outro
vai atrás. Portanto, são 1200 loops que fazem sempre sentido, independentemente da ordem
em que são apresentados, é uma narrativa não linear. Em cada apresentação são utilizados
cerca de 600 a 800 loops e há sempre uns sets que ficam de fora.
Eu trabalho com teclados,
com um software muito antigo, que já é dos anos 90, que é o Arkaos, é o paleolítico do video
jamming. Sou gozada em todo o lado por ainda usar esse software, mas a verdade é que vai
funcionando e faz o que eu quero. Monto os teclados, o Arkaos como é muito antigo é menos
intuitivo em termos de ir buscar coisas que não estejam já lá enfiadas. Depois é muito mais
fácil, obriga-te a ter tudo muito mais preparado em casa e muito mais pensado, o que te
permite durante uma actuação a seres muito mais livre. A performance, não é uma pessoa
chegar lá sem saber o que fazer, e fazer qualquer coisa. Há que preparar tudo, um conjunto de
mini regras que se pré-estabeleceu e trabalhar com as regras, improvisar sobre essa mesma
regra que se pré-estabeleceu.
O Arkaos, uma vez tudo preparado e os sets por teclado
montados, depois posso fazer o que quiser e não tenho que estar tão preocupada. É mais
intuitivo na «hora H». Durante as actuações ao vivo, aquilo é só carregar em teclas e eu consigo que me dê uma resposta à música muito mais imediata, muito mais
pessoal e muito mais intuitiva do que se tiver que andar com ratos a arrastar coisas. Durante as
actuações quero trabalhar com a música e com o público.
E estás a fazer um mestrado?
Em que consiste o colectivo Receyecler? Em que consiste a reciclagem, como se processa e quais os seus níveis?
O colectivo Receyecler foi formado também em 2007, na altura comigo e com o António Correia, VJ Photaumatic, por uma questão prática. As festas eram todas as sextas, o António já estava a começar a trabalhar, eu também e foi uma forma de termos sempre o nome no flyer, de garantirmos que um dos dois ia, mas sem termos que decidir com tanta antecedência qual dos dois é que ia.
Comunicação Multimédia na Universidade de Aveiro, ramo Audiovisual Digital
e estou a fazer uma tese em Video Projection Mapping.
O Video Projection Mapping surge,
não há uma data, eu não consegui estabelecer um início para quando é que isto se começou
a fazer. Mas posso mais ou menos adiantar que uma das coisas que marca o panorama
internacional dentro desta técnica (eu não gosto de lhe chamar técnica, porque acho que é
mais uma forma de expressão artística), é o festival Mapping, que surgiu em 2005 em
Genebra. Tem um conceito, mas em 2005 ainda não tinha trabalhos de video projection
mapping propriamente dito.
Uma imagem é projectada sobre uma superfície e a imagem é igual
à superfície. Ao movimentarmos a imagem, parece criar a ilusão de que a superfície também
está em movimento. Portanto, a tese é sobretudo direccionada na parte de video projection
mapping de superfícies arquitectónicas. Estou a trabalhar na relação com o espaço urbano
e portanto, nós preparamos um vídeo com base na fachada em que vamos projectar para
criarmos o efeito de ilusão que a fachada está em movimento. O princípio é este.
O que é para ti a improvisação do ponto de vista da música e da imagem?
Ora bem, em video jamming é um pouco diferente do resto, por causa do
contexto. Porque não é só improvisar em relação à música e à imagem, mas também em
relação ao público, para mim é a coisa mais importante, são as pessoas que estão ali. E claro
que, sendo um espectáculo de dança ou teatro, um palco, como o palco RUC (Rádio
Universidade de Coimbra) ou uma discoteca, são espaços completamente diferentes.
O tipo de
improvisação é outro. Improvisas sempre em cima da música, mas tu tens sempre o factor
espaço e público que é sempre diferente. O facto de estarem num espaço, num espaço
diferente, é diferente. Quando trabalho com um VJ, eu gosto normalmente de já os conhecer, e
gosto mais dos trabalhos que tenham maior continuidade, sobretudo quando são residências
no mesmo espaço, ou em certo tipo de festas, ou com VJ ou com DJ. Porque tu podes criar
uma relação com o público muito diferente e tu consegues, por um lado, que o público te
acompanhe numa viagem mais a longo prazo, e não numa viagem tão curta de uma noite que
cais ali de para-quedas. Vê-te ali aquela noite, é um público que não te conhece muito
probablemente porque os VJ, a maior parte deles ainda não são muito conhecidos. Portanto,
cais ali de pára-quedas, tens uma noite para comunicar com o público e vais-te embora. Isso é
uma coisa. Outra coisa é quando tu tens um longo prazo e sabes que vais ter um ano pela
frente para trabalhar com o público e podes fazer as coisas com outros timmings. Podes levá-
los numa viagem mais lenta, encaminhá-los e educá-los.
Em relação à música, eu acho que há
um trabalho de respeito pelo DJ que está ao teu lado. Ele está a passar música e ele sabe o
que está a fazer também. E portanto, nós estamos ali a entrever, a interpretar sons e estamos
a criar uma segunda via de comunicação entre o DJ e o público.
Eu acho que nós temos que
respeitar muito o trabalho que ele está a fazer e por outro lado tempos que o interpretar e
introduzir a nossa sensiblidade na tela de vídeo. Nós damos muito apoio a quem está numa
discoteca sozinho, as pessoas saem numa sexta ou sábado à noite, para beber copos,
esquecer a realidade que tiveram durante a semana, para desanuviar, para dançar,
conhecer pessoas... É um acto cultural, para mim é um acto cultural. Eu vou sair à noite e eu
quero que me dêem coisas boas, coisas que eu nunca vi e coisas que nunca ouvi. Eu não
tenho pachorra para pesquisar música. Para isso há DJ, certo?
Portanto, eu vou sair à noite e
quero que me surpreendam, eu quero ter vontade de ir ter com o DJ e perguntar que música é
que está a passar. E eu acho que é o mesmo com os vídeos. Nós tomamos conta de um
público que está à nossa frente, que entra na discoteca e deposita uma confiança em nós, em
que o vamos tratar bem o resto da noite. Que podem relaxar, divertir e beber à vontade, porque
estão ali, uma, duas, três pessoas e toda a estrutura do staff que o acompanha até ao fim da
noite, para ir para casa e querer voltar. Eu acho que o nosso trabalho é um pouco
esse.
Depois podemos ter várias técnicas. Em momentos em que a música sobe muito,
dependendo das noites, eu às vezes gosto de aliviar o vídeo e dar espaço à música para
respirar sozinha, há outras alturas em que se calhar a música é tão forte e eu naquele dia
estou com mais energia e então apetece-me intensificar com a imagem e tornar isto num
momento muito forte. E portanto, estamos a provocar experiências, estamos a comunicar com
o público. Eu costumo muitas vezes falar que há ali um jogo de sedução, onde o público é
seduzido pela música e pelas imagens e andamos ali todos, uns atrás dos outros. Quando não
é video jammimg, é diferente.
Um dos objectivos a que se propõem os VJ/Video Jamming é a manipulação das
imagens em tempo real. Explica-me como se processa essa manipulação. Podemos pensar que esse caminho passa
pela reciclagem de fragmentos (samples)?
Passa também, pode passar ou não. Não há um método, cada um de nós tem
o seu próprio set up, cada VJ, normalmente. Isto demora anos até encontrar o set up certo,
ou seja, que tipo de vídeos, com que software, em que computador, com que MIDI controller é
que eu consigo funcionar melhor. E isto é um trabalho de pesquisa pessoal que cada um de
nós teve de fazer. E eu própria não uso sempre o mesmo tipo de set up, consoante o tipo de
actuação. Por exemplo, se for num palco, tenho cinco ecrãs, preciso de não sei quantas
mesas de mistura, de uma data de coisas que não preciso numa noite normal numa discoteca.
A primeira coisa que faço é ouvir a música. Eu penso sempre o line up com antecedência e
muito raramente vou para um sítio sem ter ouvido ou sem fazer ideia do que é que estou à
espera.
Ouço, normalmente de uma forma descontraída, crio assim uma playlist e vou fazer
limpezas, porque quero apanhar aquele lado mais lúdico e mais descontraído da música.
Depois também faço normalmente outra coisa antes de ir dormir, é pôr headphones e esticar-me no sofá de olhos fechados a ouvir. Portanto, a base é sempre a música, parto sempre daí. E há outros truques. Faço toda uma pesquisa, normalmente com os vídeos que já
tenho, depois agarro na música, meto os meus vídeos, faço mini simulações em casa para ver
o que é que pode funcionar ou não, e quando encontro mais ou menos o tipo de linguagem que
funcione, vou à procura de coisas novas nessa linha. Cortamos loops, que são trechos
de vídeo, normalmente cíclicos, que podem não ter princípio nem fim. Eu não trabalho com
loops, trabalho com pequenos trechos de vídeo, mas eles não são infinitos, portanto, eles tem
princípio, meio e fim. Portanto, é muito raro cortar loops, isso é tudo feito em software de
edição de vídeo em casa. Consoante o software ou a forma como tu gostas de
trabalhar, preparas mais ou menos a tua noite. E, na hora, uma parte dos softwares
acabam por fazer coisas muito parecidas, uns com mais capacidade numa coisa ou em outra.
O que é que nós fazemos na hora. Vamos buscar o vídeo que achamos indicado para aquele
momento da música, por exemplo, imagina que a música te sugere um cavalo a galopar na
areia, e eu tenho um cavalo a galopar numa floresta, mas eu queria um a galopar no mar,
então vamos buscar um cavalo, vamos buscar um mar, vamos sobrepôr. É quase a teoria da
fotomontagem. Nós vamos colando umas coisas por cima das outras. Claro, tudo isto
sincronizado com a música. Nós podemos dessincronizar, e isso é interessante, e faz-se, faço-o muito. Mas para isso depende, lá está, se o público já nos «conhece» e confia em nós, podemos passar uma noite inteira a dessincronizar e eles sabem que aquilo não é má técnica,
é porque naquela noite nos apeteceu fazer aquilo. Porque aquilo pode irritar, como o
excesso de strob ou flashes…
A música é indissociavel neste processo?
Eu acho que sim, fazer vídeos sem música para mim é quase impensável. No
caso das instalações vídeo é diferente. Tínhamos um conceito que
nós gerámos e pedimos a um colega, o André Tejo, produtor de música electrónica, e
dissemos exactamente o que é que queríamos e ele fez. Inclusive, esteve a montar música
connosco em cima. Mas uma coisa precisa da outra, a música vai-te dar a profundidade de
campo que o vídeo às vezes não tem.
Explica-me a relação com o vídeo enquanto peça criativa, enquanto elemento de criação
de som e enquanto objecto abstracto, manipulado em tempo real.
Ora bem, há dois conceitos. Há o conceito de música visual e o de imagem
sonora. E agora, quando é que é uma coisa, ou quando é que andamos na outra?
Há
imagens que te provocam logo imediatamente sensações sonoras. Por exemplo, se eu
agarrar nas minhas unhas e as passar em cima de um quadro de giz, tu não estás a ouvir,
mas já te está a arrepiar, certo? E não é a imagem que te arrepia, é o som que isso provoca.
Não estando lá o som, e aí posso dizer-te que acho que é uma imagem sonora, porque
a reacção é pelo som. Depois existe o contrário, há som, é mais fácil de imaginar sons que
te provocam imediatamente imagens. Por exemplo, vamos a uma coisa básica, um cavalo
a galopar, tu imaginas logo o som do cavalo. Agora a criatividade aqui está na forma como
tu vais relacionar a imagem com o som.
Se a música até te sugere um cavalo a galopar e tu
imediatamente pensaste nisso, mas se a seguir pensares, epá não. E se for um cão ou se
for uma pessoa a correr, a andar para trás. Todas as associações de objectos - a
criatividade também parte disso - fazeres associações insólitas de coisas que já existem, mas
tu olhas para elas de repente de outra forma e é aí que o video jamming ganha corpo e força,
sendo em tempo real, com tudo o que isso implica. Tens menos de 20 segundos para reagir à
música e depois se não arranjaste o vídeo certo, tens muito pouca coisa que consegues fazer.
Tens que te aguentar até que a música vire um bocado para que consigas introduzir novos
elementos.
Sei que participaste como VJ numa actuação com os Pão. Como foi essa experiência?
Sim, participei. Foi muito engraçada porque eu nunca tinha feito nada do
género, nem com jazz, nem com a improvisação de jazz e todos a improvisar. Eles vinham a
Coimbra, ao Jazz ao Centro, sabiam que eu estava em Coimbra e perguntaram-me se eu
não queria fazer vídeos para eles. Sendo que não é a minha especialidade, porque eu trabalho
com techno desde sempre e, de repente, fazer imagem para aquilo não era muito óbvio. Tinha
conhecido o Travassos não há muito tempo e ele ligou-me a perguntar se eu não queria fazer
isso e eu disse-lhe logo na altura, não sei se vai dar, porque estava sem tempo.
Mas tu estás habituada a fazer interpretação da música para a aplicação da imagem…
Sim, sim .
Mas só fazes isso no techno?
Não, faço isso com outras coisas. O que eu queria era estar mais preparada,
precisava de mais tempo.
O que é que aconteceu? Eles ligaram-me com pouco tempo de
antecedência, parece que não, mas foi um mês. Durante esse mês eu estava com muito
trabalho, tinha a apresentação da peça de teatro do CITAC, o Normal e foi o mês
antes da estreia da peça, e ainda tive os quatro dias do palco RUC, que é um palco em que eu
não faço só video jamming. Eu faço quase a produção técnica do palco, na parte toda que é
imagem e luzes. E só um palco leva mais de dois meses a preparar. E depois disto
tudo, aparecem-me cá os Pão.
Era um projecto em que eu queria ter investido mais e que na altura disse ao Travassos, vou fazer o que puder, mas não vou conseguir preparar nada de
especial. Por acaso consegui preparar. Eu tirei o fim-de-semana com a Joana e ouvi a música,
o pouco que havia. Achei a música complexa e necessitava de vídeos pesados, com bastante
complexidade. Mas depois tinha aquela leveza, daquela coisa natural, da natureza. Então,
eu andei a filmar na Estrada da Beira, sobretudo naqueles montes, quando aquilo faz curvas
que, quando filmas, parece que tudo se vira sozinho. Fiz muitas horas de filmagem aí. E
tinha filmagens que me tinham sobrado do Normal que não tinha usado.
Eu trabalho muito
com o corpo humano, é um elemento transversal a quase tudo o que faço. Eu não trabalho
com vídeos gráficos, é muito raro, não gosto. É estranho, eu sei, sou arquitecta, desenho
espaço, mas eu não consigo atribuir sentimentos a uma linha a mexer-se ou a uma bola. É
muito complicado para mim aquilo, simplificar a música àquilo e identificar-me com isso. Por
exemplo, há trabalhos de outros VJ que eu gosto de ver, são muito gráficos e muitas vezes
fazem sentido, mas eu não conseguia fazer aquilo.
Como por exemplo?
Epá, por exemplo o Lucas Gutierrez. Ele tem um trabalho
muito gráfico, que eu gosto muito, inclusivamente já o convidei. Gosto do trabalho dele, mas não me identifico a fazer aquilo. Quando estou a
pensar a música e que imagem é que lhe vou associar, nunca me surgem gráficos, é muito
raro. Surge-me mais depressa um tique irritante de um nariz a franzir, do que uma linha a
tremer.
Bom, então eu tinha as imagens do Normal que não tinha usado, que ficaram de
lado, e tinha as filmagens das viagens na Estrada da Beira e depois foi todo um trabalho de
edição em casa, o que é que vou fazer com isto, o que é que pode funcionar. E normalmente
eu estou a editar com música ligada. A mistura entre o corpo e as paisagens foi toda feita na
hora. Portanto, andei foi a testar muitas combinações de misturas e de como é que aquilo
podia funcionar. Acabou por funcionar ainda melhor porque esse efeito de curva quando está a
filmar, que parece que aquilo mexe sozinho, a sala em que aquilo foi projectado tinha um tecto
abobadado o que enfatizou ainda mais esse efeito que o vídeo dava e acabou por funcionar
muito bem.
O espaço nunca é um elemento que não existe. Existe sempre, está lá e é para
ser trabalhado. Tens que perceber quais vão ser as movimentações das pessoas ao longo da
noite, para perceberes onde é que a imagem pode ser mais importante. Apesar de que gosto
muito do setup básico do vídeo atrás do DJ. Isso por si só funciona bem.
E gostavas de participar em outros projectos de música improvisada ou até mesmo com
jazz?
Sim, mas quero que me dêem algum tempo para preparar as coisas.
Tens alguma ideia com quem gostavas de trabalhar nessa área?
Eu acho que gostava de voltar a trabalhar com o Travassos, com os Pão,
aquilo funcionou bem, nós comunicámos bem uns com os outros.
À semelhança de outros projectos, por exemplo, do DJ Ride com o André Fernandes e
com o Rodrigo Amado, que te parece a inclusão do video jamming nessas parcerias?
Não sabia desses projectos, mas parece-me interessante a ideia, sim. Muito
embora o scratch, de todos os géneros, é para mim o mais complicado de trabalhar em termos
de imagem. O scratch ou o Hip hop.
Porquê?
Eu tenho muita dificuldade de desassociar o scratch e o Hip hop da imagem
Street art. Eu já fiz algumas experiências
com Hip hop e algumas correram muito mal, não tanto pelo público, que à partida parece ter
gostado, eu é que não. Não fiquei contente com o resultado final. Eu tenho esse problema com
o Hip hop, é muito difícil fazer um tipo de vídeo, estás a ouvir a música e sentes que aquilo
faz parte de um todo, e que faz sentido uma coisa com a outra. Fora desse estilo Street art,
acho realmente complicado.
E participares num projecto de criação de música em tempo real?
Sim, isso já fiz. São sets trabalhados com antecedência. Podes preparar sets,
e é um trabalho muito interessante, porque é um trabalho de casa, de comunicação entre duas
pessoas, que é estar a produzir música e vídeo para um live set exclusivo.
Depois há o trabalho
de teatro, que também é outra coisa bastante diferente e o palco, que é outra coisa. Num
palco, tu tens bandas, DJ, tens vários estilos. No caso do Palco RUC, é um palco que está
normalmente organizado por temas. São quatro noites, cada uma com o seu tema musical. Neste último ano, foi pop, electrónica e depois dub step e techno. Toda a imagem, o
trabalho de luzes e de vídeo tem que ser diferente. E depois tens o vídeo de frente para as
pessoas e tu estás de costas para o público. O palco é um trabalho de equipa com encenador
e com os actores. Nós temos de fazer parte do processo criativo de alguma forma, o que nos
leva a assistirmos a muitos ensaios e a ensaiar com eles. E depois, os lives. Esses devem ser
preparados com antecedência.
Quais são as tuas referências no Vjing?
Todo o trabalho que foi efectuado nos anos 60.
Há autores dos
anos 90 particularmente importantes porque, embora não sendo os primeiros a trabalhar na
reciclagem, trabalham sobretudo nessa área, que é o Martin Arnold e o Peter Tscherkassky.
O Matthias Müller também tem um trabalho de reciclagem muito interessante. As minhas
referências de vídeo vêm todas da vídeo arte dos anos 60. Faço pesquisa e leio sobre isso há
muitos anos.
Actualmente, em termos de vídeo, há uma VJ francesa de que gosto muito, a Julie Meitz que também trabalha muito nesta questão da reciclagem e no reaproveitamento,
muito embora ela depois misture coisas, mas eu gosto da ironia dela. Ela tem dois conceitos
engraçados, um que é o conceito de video jockey e de film jockey, com um projecto de Super
8, de manipulação de imagem em tempo real. Acompanho normalmente o trabalho dela. Os
ciclos de vídeo arte que vou organizando normalmente reflectem as minhas referencias no
vídeo.
Como é a cena VJ em Portugal?
Não somos muitos e há poucos espaços que apostam realmente na imagem como elemento de atracção, quase tão importante quanto a música. Ainda não estamos no mesmo patamar, somos o parente pobre das discotecas. Em
último caso, somos os últimos a ser pagos depois da empregada da limpeza. Nós somos
os únicos que logo à partida podemos ser excluídos. Portanto, esta é um pouco a postura dos
produtores no geral. Ou seja, contratam o DJ, o bar, o técnico de som e depois, uma semana
antes, ah e se tivéssemos vídeo? Quando não é na véspera. E depois chegamos lá, queremos
coisas, e depois não temos e depois é caro…
E os DJ, dão importância ao vosso trabalho?
Da minha experiência, quando eles gostam e sentem que o trabalho está a ser bem feito, dão. Eles sabem que, havendo essa continuidade, a longo prazo as festas ou aquele tipo de produções ganha coerência e homogeneidade. Acontece é que é sempre um
trabalho a longo prazo e hoje em dia todos querem resultados a curto prazo. Honestamente,
já encontrei DJ que não querem saber se há ou não VJ. Nem todos ainda têm muito essa sensibilidade para a imagem. Nós somos poucos VJ, existe uma boa comunicação entre nós, há um grupo grande aqui em Lisboa que vai comunicando regularmente e que vai acompanhando o trabalho uns dos outros.
E projectos, o que tens em mente ou gostavas de fazer?
Para além da tese, de que não posso falar porque ainda não foi publicada e que espero apresentar em Outubro, não tenho muitos planos. Dadas as circunstâncias, nem sei bem se fique em Portugal. Depende das oportunidades que surgirem entretanto.
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* Originalmente publicado a 21 de Junho de 2013, na Le Cool Lisboa * 397
Sim, sim .
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* Originalmente publicado a 21 de Junho de 2013, na Le Cool Lisboa * 397
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