Entrevista a um Barco do Barreiro por Luís Carvalho


Há dias felizes, luminosos, em que um homem dá por si a colocar em causa o que sempre fez por igual, interroga-se da razão de um preconceito, do motivo para agir em repetição. O que fica desses dias não é conclusão ou resposta, mas a compreensão que tudo podia ser diferente sem nada estar incorrecto. Foi o que me aconteceu ontem. Uma pessoa anda de barco todos os dias, ao amanhecer ao entardecer, entra autómato sai a correr. E nisto se leva uma vida sem se perguntar “E o barco? Quem é este barco?” Posto isto, como não sou de me ficar com interrogações, saio do barco e sigo por dentro em direcção ao porto de barcos velhos, passo pela estação de comboios, encosto-me a um deles, pesado, branco debruado a azul como casa alentejana, os moinhos na plateia e Lisboa no balcão, ganho coragem e entabulo a conversa que a seguir vos resumo, salto directo, sem passar pelas apresentações e os atrapalhos inciais, para o cerne da conversa, quando a palavra já estava bem instalada.


Do que tenho mesmo medo é de ficar aqui abandonado, cão de guarda dos moinhos, com o meu corpo a ser graffitado com coisas que não gosto. E olhe que eu não tenho nada contra graffitis! Mas o mau gosto impera, pintam só por pintar, não por necessidade de dizer ou expressar uma emoção e depois eu que me aguente… mas sim, ficar aqui abandonado é o pior que me podem fazer, é pôr o pássaro na gaiola, não fui feito para estar quieto a olhar o horizonte. “

Mas agora que já não faz a viagem o que gostava de fazer?
Sei lá… Podia ser um café-bar. Porque não? A vista é bonita, eu tenho um espaço largo e aprazível, se o serviço fosse de qualidade clientes não faltariam. Nas manhãs de fim-de-semana famílias com crianças para tomar o pequeno almoço, os pais liam o jornal as crianças correriam barco fora sentindo o ar salobro na pele; nas noites podia haver concertos ao ar livre e festas na cave; e nas tardes os estudantes tomavam conta do espaço, não há melhor para estudar do que ser embalado pelo vagar do rio. Olhe, podia até ser só uma biblioteca, ou então uma livraria mesmo, que coincidência maravilhosa! as pessoas começavam a ler o livro num barco, quer sítio mais emblemático para iniciar essa viagem?

Era esse o seu sonho? Ser uma livraria ou biblioteca?
Não!O meu sonho, o meu grande sonho era poder mergulhar, ir às profundezas desta água que me carrega desta companheira de sempre, a minha razão de ser, mas dada a minha natureza não lhe conheço mais que a superfície, o meu sonho era poder entrar por ela abaixo como submarino, conhecê-la sob o brilho prata com que se enfeita; conhecê-la como conhecia os meus passageiros.

Mas o que quer dizer com isso? Olhe que eu fui seu passageiro…
Oiça, trinta minutos é pouco tempo, não dá para conhecer ninguém, mas 5 dias por semana, 52 semanas por ano, anos a fio, uma viagem para lá outra para cá, é muito tempo. Um barco atento acaba por conhecer as pessoas bem, sou companheiro de uma vida de muita e muita gente, andamos com as pessoas às costas tantas vezes que acabamos por lhes conhecer as manhas, os estados de espírito, por vezes até os pensamentos mais ocultos. Tenho saudades desses tempos, tenho especialmente saudades da novela.

Da novela?
Sim, sim, a novela, que nome tem o ramerame que vocês levam? A novela, claro. Eu vi muita coisa. Vi relações começadas; melhor, vi o primeiro olhar trocado do que viriam a ser famílias e filhos, vi também o último de algumas outras. Vi a dor prolongada da perda, cicatriz marcada na cara. Alegrias incontidas. Vi ressacas curadas nas entranhas do WC, esgares que se fixavam em sorriso e alívio, acho que esses podiam morrer ali, naquele momento, acho até que o desejavam. Vi também mães babadas, e os filhos a crescer, e as mesmas mães babadas de novo, mas em lágrimas. E o que não vi ouvi, traições, enganos, roubos, tudo me passou pelo corpo. Mas custa-me que ninguém se aperceba que eu sei isto tudo, que ninguém perceba que entrar num barco todos os dias é estabelecer uma relação de intimidade, até de amizade, muita dessa gente nem sequer sabe o meu nome…. mas pronto…que se há-se fazer? Mas sabe uma coisa? Tive o melhor emprego que podia ter. O mundo todo na minha frente e isso são poucos os que podem dizer.

Nunca se fartou? Das pessoas? Da viagem todos os dias repetidas?
É como lhe disse, eu tinha o melhor emprego do mundo, a novela fazia todos os dias serem diferentes. E depois a viagem era a mais bela do mundo, saía do Barreiro a olhar a foz do Rio Coina, a beleza de aço da siderurgia no Seixal, imponente e hostil, caminhava depois ao largo da praia, os moinhos no Barreiro, lindo quando visto do rio, passava ao longe pela baía do Seixal, as casas alinhadas prontas a receber o Tejo, seguia até à Lisnave, onde o rio se abre ao mar, a ponte, o oceano em fundo sem contorno, porta aberta ao infinito; por fim, Lisboa espraia-se ao comprido, com as suas casas em corrida de crianças colina abaixo.

Quem nunca viu Lisboa do rio numa manhã de Primavera não pode ser completo. Na primeira viagem do dia a chegada é assombrosa, a luz escorrega nas colinas entre a névoa suave e as cores das casas salpicam no Tejo. Lisboa é a mais bela das mulheres de idade. Mas claro que me fartei da viagem, da rotina…mas sabe? a rotina também nos constrói, passar pelas mesmas situações muitas vezes é que nos faz crescer, corrigimo-nos, tornarmo-nos melhores, e com o tempo também fui encontrando formas de me distrair, contava histórias a mim mesmo: imaginava-me mouro a abeirar-se de Lisboa, entrar a toda a força para surpreender. Fazia dos passsageiros generais, coronéis, soldados, e como tanque de combate subia Alfama acima, combate após combate disputados com bravia e valentia pelos meus homens até tomar o castelo e Lisboa render-se à força maior do Sul. Nos dias de temporal, em que as ondas vindas do mar me tomavam por página de livro e as mães assustadas davam gritos contidos, (aquilo metia medo, a mim não que fui feito para o mar alto, mas quem não estivesse habituado não podia deixar de tremer).

Nesses dias imaginava-me a afundar, a afundar lentamente, com gentes em pânico, outras em mil lavores para todos salvarem. As bebedeiras dos mestres e contra-mestres a desvanecerem-se num sopro e as valentias anunciadas a afundarem-se comigo, devagar. Devagarinho começo a ver peixes, a penumbra marítima a toldar os raios de sol, os corpos espalhados pela àgua cada vez mais longe e com um pequeno estrondo bato no lodo e tombo para a esquerda, adormeço num longo sono; outras vezes imaginava que era eu o centro, que estava fixo e que o rio se deslocava ora para um lado e trazia Lisboa ora para o outro e trazia o Barreio, o rio pêndulo e eu o relógio. E vinha uma, vinha outra, vinha uma vinha outra, à vez, como um baloiço, cima, baixo, cima, baixo.

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Foto desd' O Céu de Lisboa ::  http://o-ceu-sobre-lisboa.blogspot.com

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