O Pedro Alfacinha trocou umas palavras com João Ferreira, director artístico do Queer Lisboa 17, que corre na cidade até dia 28 de Setembro.
O Queer Lisboa já é um festival crescidinho e está quase a atingir a maioridade, o que mudou nos últimos anos?
Um festival tem sempre que adaptar-se e acompanha a sociedade, as mudanças políticas que vão ocorrendo e tem que estar sempre atento ao que se passa à sua volta. Tem que estar atento aos espectadores, que vão mudando, chegam novos, novas gerações e tem que ser sempre um reflexo e uma observação atenta da sociedade.
É algo orgânico, tem que ir mudando. Depois há outros factores que operam essa mudança, o facto de no início sermos o único festival que havia em Lisboa, olhávamos para a programação de uma certa forma, uma preocupação política diferente e depois com a evolução das mentalidades e das leis e devido ao facto de haver mais festivais em Lisboa, a programação também tem que se adaptar. É um dos bons desafios do festival, não deve nunca estagnar.
E olhando para a programação deste ano podemos dizer que é mais política?
Eu diria que sim, embora não intencional. Não acho que um festival deva
manipular a sua programação num determinado sentido, além de ser
abrangente. Temos é que estar atentos é ao que os realizadores andam a
fazer,que tipo de cinema é que se está fazer e a verdade é que nestes últimos dois anos há um conjunto de filmes que têm uma preocupação
política, há questões nos vários pontos do globo por motivos
diferentes, quer seja na Europa por motivos económicos quer seja
nos Estados Unidos sobretudo devido à emigração e lutas políticas LGBT,
que tornaram de facto esta programação deste ano mais política.
São os
filmes que fazem o festival. O cinema, não só o cinema queer reflecte o
que acontece em seu redor. Qualquer objecto artístico é uma consequência
do seu tempo e do seu espaço.
Olhando para a programação no seu todo, vão ser exibidos filmes provenientes de 26 países diferentes, em tua opinião o que levou a uma globalização do movimento queer?
Não acho que exista uma relação directa entre o movimento queer e o
cinema, eles tocam-se obviamente e influenciam-se. Existe esta temática a
ser explorada nalguns cinemas, por exemplo no cinema asiático, em que
ele não está ligado a qualquer movimento social ou político, ele surge
por uma vontade artística do seu criador, do seu realizador.
Nota-se que
é cada vez mais alargado, um país como a Polónia cujo cinema sempre
teve muitas dificuldade em entrar nesta temática, sobretudo em grandes
produções, em longas-metragens, nas curtas-metragens acontece. Este ano
temos duas longas-metragens polacas que abordam abertamente a temática
gay, sem dúvida é um reflexo das mudanças que estão a acontecer nos
países. Estes filmes permitem-nos observar o que se passa no mundo
inteiro.
Uma das novidades desta edição do QL17 é o In My Shorts, fala-nos um pouco do que se trata.
Esta ideia surgiu porque cada vez mais tínhamos filmes de escola,
recebíamos filmes de escola de submissão e a dada altura por um lado
achámos que era injusto colocar na mesma competição filmes que ainda
não possuem a capacidade económica de uma produtora por detrás, têm
outras características que os destinguem dos outros mas que eram muito
bons e merciam estar numa competição e esse foi um dos motivos, por
outro queríamos arranjar uma forma de incentivar os realizadores
portugueses, estudantes, para fazerem filmes com esta temática, criando
um prémio, uma masterclass, sendo uma oportunidade, um aliciante para os
mesmos.
O Queer Lisboa tem uma nova casa e está junto de outros festivais lisboetas, é importante esta sinergia?
Sim e tem sido muito interessante, estamos todos juntos no mesmo
edifício. Já nos conhecíamos todos, directa ou directamente, se não em
colaborações formais sempre conversámos ao longo do ano, sobretudo com o
Indie e com o Doc, até porque coincidimos em programação, por isso
falamos muitas vezes. O facto de estarmos no mesmo espaço facilita muito o nosso trabalho, há uma grande troca de ideias e isso tem sido muito positivo.
Passados 17 anos, desde a primeira edição, o filme de abertura volta a ser um documentário, o que motivou a vossa escolha?
Não era uma vontade explícita, não pensámos: não vamos apresentar uma
ficção mas vamos apresentar um documentário ou uma curta-metragem. Tem a
ver com o filme em si, quando vimos o filme percebemos que ele de facto
tem muito a ver com aquilo que o movimento defende , tem essa idéia
inclusiva, aquela sauna era absolutamente inclusiva e trata duma parte
importante da história, em Nova Iorque, onde o movimento foi importante,
onde nasceram muitos artistas e parte política foi importante.
Existia
este espaço que já ouvimos falar mas eu próprio não conhecia a história a
fundo. É muito interessante o que está por detrás, por um lado
desmistifica muitas coisas mas por outro também é fascinante perceber
como aquele espaço se desenvolveu.
Uma das estreias mais aguardadas é o filme «E Agora? Lembra-me», de Joaquim Pinto, podes levantar um pouco o véu acerca deste filme?
Há uma relação muito próxima do festival, desde a primeira edição, com o
Joaquim Pinto, é dos realizadores mais interessantes do cinema
português, um bocado esquecido, é muito raro revisitar as suas obras dos
anos 80 e 90 e mesmo o trabalho que tem desenvolvido em
curtas-metragens é muito pouco conhecido. Ele está a preparar este
documentário há já alguns anos, eu já tinha falado com ele, já conhecia
alguns textos em que ele me mostrava a fazer e de repente aparece o
filme.
E era óbvio para nós que tínhamos que ter esse filme, pelo
realizador e pelo filme em si e acho vai ser um marco no cinema
português, não tenho dúvidas acerca disso.
Continuando a falar em relação à Secção Panorama que outros destaques gostarias de fazer?
Vamos mostrar o novo filme de João Pedro Rodrigues, «O Corpo de
Afonso». É um filme muito interessante, vai buscar toda a mística à
volta do fundador da nação, D. Afonso Henriques, e do corpo dele.
Segundo as descrições da altura tinha um corpo desmesurado, enorme.
E o
João Pedro vai fazer um casting na Galiza para encontrar esse corpo, só
que o filme depois desenvolve para uma área social, mostra aquilo que
foi a fundação do país , o que se está a passar actualmente, o que é que
aconteceu a esse país e essa dualidade está articulada de maneira
brilhante.
Em relação à
Secção Queer Focus, um dos destaques é o filme «Boy Eating The Bird's
Food», de Ektoras Lygizos, que retrata a realidade grega actual, é muito
diferente da nossa?
Sim e o
filme mostra isso, espero que Portugal não chegue ao estado que a Grécia
chegou e há alguns que antevêem um futuro ainda pior. O filme é o
retrato do perigo que esta Europa corre, esta idéia duma Europa gerida
por banqueiros e gente sem escrúpulos e onde os políticos se renderam à
banca, deixou de haver qualquer ideal político e social, mostra o grau
zero a que nós chegámos ao nível de humanidade.
Só que mostra isso duma
forma muito humana, é comovente a forma como aborda essa questão. Vemos
naquela personagem como é que o estado consegue destituir um cidadão de
todos os bens materiais e toda a sua vontade, todo o seu desejo.
Falando de personagens incontornavéis, que marcaram uma geração e até um modo de pensar, um dos nomes que pertence
a esse grupo tão restrito surge o de Gore Vidal, o que podemos ver no
documentário «Gore Vidal: The United State of Amnesia»?
Uma das motivações da escolha é porque Gore Vidal é uma figura muito
pouco conhecida em Portugal. Os livros estão editados mas mesmo no meio
literário não é um autor muito citado e não é consensual, sobretudo
devido à sua genialidade e à sua mística. É um documentário muito bem
feito, que passa por tudo aquilo que foi importante na sua vida, fala
sobre os livros claro mas também a vida política e até a vida pessoal.
Conseguimos perceber ali porque nunca foi uma personagem muito querida
na comunidade gay dos Estados Unidos. Eu acho que ele foi um bocadinho
queer antes do tempo e isso ainda era perigoso na altura em termos de
afirmação política.
Num outro registo, mas ainda na Secção Queer Art, temos o documentário «Wonder Women! The Untold Story of American Heroines».
Ao contrário do documentário sobre Gore Vidal que se foca numa figura e
a sua ligação com a história da América aqui estamos na área da cultura
popular e de como na produção televisiva e cinematográfica, que nos
Estados Unidos é muito marcada pela visão do universo masculino, as
mulheres conseguiram construir imagens de poder, imagens de referência
dentro dessa cultura popular. Toma como ponto de partida a Wonder Women
para falar do movimento feminista e do papel da mulher.
Duas das secções que têm bastante adesão por parte do público são o Queer Pop e as Noites Hard, quais as novidades este ano?
O Queer Pop vai ter uma sessão sobre o David Bowie, onde vamos
revisitar os seus grandes êxitos, sobretudo na perspectiva do teledisco,
do vídeo e abordar o seu regresso, está novamente em alta, com uma
exposição no Victoria and Albert e o lançamento de um novo álbum.
As
Noites Hard este ano vamos cingir a um só realizador, o Avery Willard,
conseguimos uma série de curtas, há uma longa e um documentário que fala
sobre o Avery Willard. A pornografia gay nesta altura tinha uma
importância fundamental porque era a única forma de a comunidade gay se
rever, dois homens a terem sexo sem existir o sentimento de culpa.
E como a diversão é algo que faz parte da matriz deste festival são
várias as festas programadas, surgindo como novidade uma parceria com o
Colectivo -Mente presente no espectáculo Queer-mente.
Foi um convite que o -Mente nos fez, eles pretendem apresentar
projectos em espaços fora do circuito mais comercial, com temas
diferentes e desafiaram-nos a fazer parte de um dos -Mente ligado ao
Queer Lisboa. Falámos do tema da transgressão, inspirados pelo
documentário da Divine que vamos passar este ano e lançámos o convite a
vários artistas, de várias artes, dança, teatro, performance, vídeo para
fazer uma mostra muito ecléctica de oito minutos cada.
O filme de encerramento «Out in the Dark», o que é que trata?
É um filme com potencial comercial enorme, foi principalmente o motivo
pelo qual foi escolhido para a sessão de encerramento, onde existe um
público muito diversificado. É um filme que fala directamente duma
relação gay e tem um elemento político forte acerca das relações entre
Israel e a Palestina. Tem a capacidade de agradar a um número maior de
pessoas e isso é importante na sessão que marca o fim dum festival.
Por fim gostava que lançasses um repto ao público para vir ao Queer Lisboa 17.
Tenho a certeza que quem gosta de ir ao cinema, vai encontrar aqui mais
do que um filme do seu agrado. O cinema queer como género atravessa
todos os tipos de cinema, é transversal. Temos tudo aqui, vários
formatos desde curtas-metragens, longas-metragens, documentários,
animação e ao nível de género temos melodrama, ficção científica,
thriller, por isso não percam a oportunidade de ver bom cinema.
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Queer Lisboa 17 : queerlisboa.pt
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