Le Entrevista a Almost a Song (Joana Sá e Luís José Martins) por Pedro Tavares

Quando se fala de música eletrónica em Portugal, Joana Sá é um nome incontornável. Falem-nos um pouco do vosso interesse nesta relação da música com a tecnologia, na comunicação que a eletrónica tem com o nosso quotidiano e com o papel que desempenha no vosso trabalho.

Joana Sá (JS): Na realidade, esta pergunta é para mim muito surpreendente. Associar o meu nome à música eletrónica como sendo um nome incontornável… estou surpreendida com esse fator. Na realidade, a música eletrónica surgiu na minha música enquanto laboratório experimental do Powertrio, que é o nosso trio com o Eduardo Raon, e que é quase como se fosse a nossa escola. 


Nós os três fomos formando uma linguagem bastante própria e experimentando várias abordagens, e a eletrónica surgiu nesse contexto, até mais por input do Eduardo que já fazia mais coisas… A eletrónica que nós utilizamos, e que eu utilizo, são coisas de processamento de pedais…

Luís José Martins (JM): A abordagem que nós temos à utilização da eletrónica é uma ferramenta…
ou é um recurso, quase duma extensão natural do instrumento. Raramente as coisas nascem ao contrário, da eletrónica para o instrumento. Será sempre uma transformação do som do instrumento que nos permita criar um instrumento maior. Acho que nunca acontece ao contrário, no sentido de termos um pensamento primeiro a partir de um som eletrónico para a construção de um material musical maior. Também pelo nosso percurso e pela nossa experiência, a nossa formação é como
instrumentistas, é como intérpretes, antes de sermos criadores. Então, a nossa base de trabalho será sempre o instrumento e nesse sentido a eletrónica é sempre uma extensão…

JS: Para mim é mesmo surpreendente, porque eu, na realidade, sou um bocado naba com a eletrónica, a verdade é essa. Mas é um bocado isso que o Luís está a dizer. Eu utilizo alguma eletrónica porque temos uma ideia deste instrumento maior e estamos à procura duma coisa diferente e então… eu esforço-me e vou à procura daquilo que vai ao encontro do que queremos.

O próprio recurso à eletrónica dá mais elasticidade à música. É uma extensão não só do instrumento, mas também uma extensão do próprio som que sai, que pode ser trabalhado…

LS: E a utilização é um bocado essa, é aproveitar o recurso da eletrónica para tratar plasticamente o som, de uma forma… pelo menos numa escala que por vezes não é possível com o instrumento, sobretudo quando são instrumentos tradicionais. Nós não deixamos nunca de tocar os instrumentos base, e a base da nossa música acabam sempre por ser dois instrumentos acústicos, uma guitarra clássica e um piano. E uma das formas mais naturais de os conseguirmos expandir é mesmo através do recurso da eletrónica, apesar de ser sempre um elemento de trabalho… como é que eu hei de
dizer… orgânico! A eletrónica para nós nunca pode ser um elemento indissociável do instrumento. Tem que ser sempre um elemento que o nosso input emocional consiga também mudar, e não seja uma máquina que esteja independente de nós.

JS: Sim, sim…

Sei que usam a improvisação como laboratório de material que, quando consideram bom, reciclam e usam para construir obras musicais, ou seja, para compor. Acho a ideia genial! A improvisação é momento de pura liberdade e, portanto, é também possibilidade. A reciclagem desse material não deixa de ser uma exploração desse estado puro de criação. No entanto, a sua gravação retira-lhe o lado efémero que o caracteriza.

Como distinguem estes dois processos criativos - improvisar e reciclar/compor, e quais são os limites que colocam, se é que existem, nesta transformação?

LM: É mesmo uma ferramenta importante na construção da música que fazemos.

JS: Sim, e para nós é mesmo uma abordagem diferente no sentido que vimos da música escrita, ou seja… nós trabalhámos no tempo só com a música escrita e esta possibilidade foi uma descoberta… Esta composição a partir da improvisação acaba por ser também uma forma mais orgânica, como nós estávamos a falar, de composição, em que o material vem diretamente da performance para uma ideia
musical mais estabelecida e que não passa pelo papel, o que para nós acabou por ser uma coisa relativamente nova.

LM: E de certa forma libertadora a nível de linguagem. Sentirmos que é bastante diferente o resultado de interpretação de música escrita para a criação de um momento sem papel. Porque mesmo o funcionamento de relação com o tempo, com a construção musical, é bastante diferente. E acho que esse laboratório, ou o espaço da improvisação como laboratório para a criação… O que nós fazemos acabam por ser peças fechadas, mas a improvisação como processo para chegar ao resultado final é
uma ferramenta para nós, neste momento,…

JS: Para escolha de materiais e para… para tudo!

LM: Acaba por ser quase a base da nossa construção musical.

JS: E também no que diz respeito à forma final das peças, depende… mas é normalmente uma forma relativamente aberta, ou seja, obra aberta em que nós estabelecemos materiais… Mas no “Almost a Song” estão todos muito…

LM: Estão todos muito fechados.

JS: Muito, muito fechados, mas há sempre alguma margem… às vezes estás tu a fazer uma coisa mais definida, estou eu a fazer uma coisa que tem um material específico, mas vai sempre mudando consoante o dia…

LM: Também porque temos uma barreira... Uma das características principais deste projeto é trabalhar sobre o formato canção. Logo aí impõem-se barreiras de estruturas, que limitam um pouco o espaço de termos peças de improvisação total.

JS: Sim, este projeto é uma espécie de uma abordagem ao formato canção, mas vindo de muito longe! Ambos gostamos deste formato mas gostávamos de experimentar coisas diferentes e temos tido ao longo do tempo várias ideias de projetos, e ideias disto e daquilo. E de forma assim espontânea surgiu esta de fazer este projeto em duo. O Eduardo está na Eslovénia e nós já não tocávamos há imenso
tempo, agora era mais difícil tocar em trio, e resolvemos fazer uma coisa os dois. E este foi o ponto de partida que achámos giro de seguir e que dava pano para mangas.

LM: E mesmo a nível da improvisação… nós tocamos juntos há muitos anos, como duo, e fazemos sobretudo música escrita. E um dos exercícios principais do trabalho em conjunto que tínhamos era mesmo um interesse "camarístico". Perceber como é que conseguíamos trabalhar os dois na criação de uma coisa, de uma entidade mesmo, com uma personalidade muito forte, e que nos conseguíssemos perceber…

JS: E que com guitarra e piano é difícil!

LM: Sim, o piano come sempre a guitarra, tem muito mais som. Mas isso obrigou-nos também a perceber muito bem quais é que são os espaços que cada um pode ocupar, pelas limitações mesmo do som, físicas, de cada instrumento.

JS: E para dar a volta a dificuldades que nós também já tínhamos encontrado em diversos processos porque tínhamos compositores que às vezes escreviam para nós e havia coisas que resultavam muito bem e havia outras coisas que não tão bem e, pronto… e este foi um passo diferente, foi: ok, já experimentámos várias coisas, agora também podemos construir uma linguagem nossa, com ferramentas também diferentes.

E porquê a canção?

LM: Eu acho que foi engraçado. Começámos a trabalhar e de repente, para aí nos dois primeiros exercícios, percebemos que andávamos à volta de formatos simples. E depois também havia que batizar o projeto para um concerto. E de repente surgiu e acabou por ser esse o motor da construção das músicas.

JS: E eu acho que também há uma coisa um bocado descomplexada de… nós vimos da música esquisita, salvo seja, e é voltar às coisas, aos formatos, simples.

À estrutura, referes-te, porque a canção pode continuar a ser esquisita.

LM: Sim, sim, claro.

JS: Sim, claro.

LM: Pode perfeitamente! E aqui fala-se de uma canção que a própria melodia por vezes está completamente ausente, ou estilhaçada, ou… que nem há papel de melodia muitas vezes. Logo, é uma canção no sentido mais aberto e na maior parte das vezes no sentido poético, no caso, da utopia da canção.

Existe um mundo mágico infantil recorrente no vosso trabalho. Em “Almost a Song” encontramo-lo novamente. Ao ouvir algumas das composições caímos nas memórias mais agradáveis da nossa infância. Que lado infantil é este que exploram e porquê?

JS: Eu acho que isso é o lado encantatório. Quer dizer, o que eu acho que nós procuramos, mais do que tudo, mais do que fazer música assim ou assado, é essa coisa curiosa e de sermos surpreendidos e estarmos sempre à procura e de brincarmos!

LM: Uma coisa lúdica também. Pode ser sério e não deixar de ser…

JS: Uma brincadeira! E eu acho que se calhar as coisas transmitem-se dessa forma quando temos essa abordagem, essa perceção e essa forma de estar. Se dizem que reconhecem se calhar é…

LM: É bom, fico contente!

Joana, sei que admiras Clarice Lispector. Há uma frase dela que diz “…no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro”. Depois de ouvir o teu trabalho, penso que esta ideia podia descrever a tua forma de criar e estar na música. No álbum “Almost a Song” isto parece ser mais evidente. Há algo que se procura alcançar, mas que alcançamos apenas… ou quase… almost… É assim?

JS: Eu acho que sim. Esta frase da Clarice diz muita coisa e é também um bocado isto que estávamos a dizer anteriormente. O que estamos à procura é de um percurso em que vamos encontrando coisas diferentes. E, por exemplo, este “Almost a Song” foi, tanto para mim como para o Luís, acho que também surpreendente, no sentido em que eu própria não estava à espera de fazer aquilo, ou seja, não era aquilo que eu exatamente esperava de mim. No bom sentido, no sentido de que aquilo se calhar não eram exatamente as coisas que tínhamos feito antes, era uma coisa um bocadinho diferente. E de repente acho que vamos descobrindo coisas de nós próprios, neste caso musicalmente, e acho que isso é o mais importante, mais do que… mais do que tudo… é ir descobrindo…

“Almost a Song” parece também um “almost a movie”, no qual se desenrolam um movimento e uma ação através de uma linha de tempo imaginária. Pensaram nalgum momento desta forma, ou é uma simples sensação, fruto do resultado final deste trabalho?

LM: É verdade que quando reouvimos… mesmo durante o processo de construção dos temas, havia muito o voltar atrás, ouvir e ver o que estava feito, e é verdade que às vezes isso também nos encantava, esse percurso pelo tempo e quase de encontrar narrativas com facilidade, ou conseguir criar imagens. Mas esse não foi o objetivo. Elas nasceram naturalmente com o material que ia surgindo. Não foi isso que nos guiou, foram sempre, se calhar, ideias mais simples do que isso… Criámos narrativas, mas musicais: aqui vai rebentar, aqui temos que criar um momento em que
isto rebente desta forma, isto é um diálogo, aqui acompanhas-me tu, aqui acompanho-te eu…

JS: Aqui eu julgo que te estou a acompanhar e tu julgas que eu te estou a
acompanhar…

LM: Mas o objetivo é musicalmente conseguirmos defender bem essas ideias simples, no sentido de fazer música, no sentido mais puro de todos, que é surpreendermo-nos um ao outro. Quando é para fazer uma melodia, cantar muito bem a melodia, quando é para fazer acompanhamento, acompanhar muito bem quem está a cantar, quando é para partir a loiça é para rebentar tudo. E nesse sentido, é o que eu disse há pouco de fazer música de conjunto, duma escuta total…

JS: E um cuidado muito grande nessa questão camarística, de nos ouvirmos.

LM: De quando estamos a tocar os dois haver um exercício de… como é que eu hei de dizer… de afastamento um bocado dos egos. Isto é a música, isto é…

JS: Isto é uma coisa.

LM: Isto é uma coisa, maior do que… E acho que se calhar foi sempre o exercício que procurámos enquanto músicos, sobretudo enquanto tocamos juntos. Há ali aquela entidade maior que é a música e nós estamos ali para servi-la.

Luís, a guitarra clássica surge frequentemente neste álbum como um lado mais melódico da música, contrastando com a textura metálica dos restantes sons. Que comentário te merece esta afirmação?

LM: É possível, sim. Ouvindo ou reouvindo o disco, é verdade que muitas vezes a guitarra é assim o lado apaziguador da coisa. Mas eu acho que também é um bocado… para mim o registo mais bonito da guitarra clássica é no limite do som. Quando eu me encanto com o instrumento é quando o instrumento está no limite do piano, nos pianíssimos, e é onde se consegue jogar com os timbres que eu acho naturalmente mais bonitos do instrumento. E se calhar procurei nestes temas encontrar mais esse lado em mim. Mas por outro lado, não sei, se calhar também é uma personalidade…

JS: Por acaso, também acho que é uma coisa de personalidade. Penso que os dois temos intuitivamente impulsos musicais que são mais isto ou mais aquilo, que são muitas vezes semelhantes, mas neste caso específico, o que me parece, mesmo às vezes quando estou a ouvir as coisas, é que muitas vezes estamos a fazer coisas completamente diferentes e que coexistem, na minha opinião, muito bem.

LM: Eu acho que naturalmente eu tenho muito mais tendência para a consonância e a Joana tem mais tendência para a dissonância. Mas não no sentido…

JS: Não no sentido estrito, porque tu também quando…

LM: A Joana é mais fragmentária, é de discursos…

JS: Sim, eu sou mais de discursos… de desvios abruptos, cortes, passou para outra! Eu tenho uma tendência natural maior para isso, o Luís se calhar tem uma tendência natural mais contínua e generosa! Mas acho que é isso, acho que acabam por ser vestígios de personalidades musicais que surgem naturalmente, como é óbvio.

Joana, o teu trabalho coexiste com diversas formas de arte, como as artes plásticas, as artes cénicas ou o cinema. É desenvolvido e discutido com diferentes setores da sociedade: com as crianças, em projetos educativos, ou com reclusos, com o projeto rExistir. Tiveste ainda uma componente educativa através do CENTA (Centro de Estudos de Novas Tendências Artísticas). Podemos pensar que a Joana é uma pessoa que ama a vida e aquilo que a rodeia? Podem responder os dois, já que alguns destes projetos são em conjunto.

JS: Isso sim, sem dúvida! Em relação à questão do CENTA, nós tivemos ambos…

JM: Foi um projeto em que estivemos durante dois anos.

JS: Em 2008 ou 9… não, 2007 e 2008. Mas sim, há um interesse comum pela vida e por fazer coisas com mais pessoas. Estou com um projeto com o Simão Costa, que é um espetáculo para crianças, mas não estou, neste momento, a trabalhar com crianças especificamente. Mas sim, existe… primeiro, uma ideia, e nós sempre tivemos esta ideia desde o Powertrio, de pensar a música não só como a música, de pensar a música com tudo... Para nós tudo é importante. Quer dizer, a forma como
estamos no palco, as luzes… O Powertrio foi um primeiro exercício nesse sentido, de criarmos não só um concerto, mas um concerto que tinha também uma parte visual forte, e que nos era importante. Ou seja, criar para cada momento musical um ambiente que nós achamos que é o adequado. Talvez porque se calhar nós próprios… Eu irrito-me muito quando vou ver concertos e de repente há uma coisa espetacular, uma coisa lindíssima, e estou com umas luzes florescentes, e o pianista
tem uma bandeira portuguesa por cima, e não bate a bota com a perdigota…

LM: E muitas das vezes na procura de, se calhar, mais do que outra coisa, condicionar a experiência de quem vê.

JS: Condicionar, espero, no bom sentido!

LM: Sim, tentar encaminhar a experiência do público para o que nós queremos que seja. E nesse sentido acho que é uma preocupação…

JS: Para que a música possa ter um maior impacto porque é uma questão só de ajudar. Às vezes são pequenas coisas, estamos a falar de música um bocadinho diferente e às vezes há público que não está… Nós já tocámos em situações muito diferentes, com um público que não está mesmo habituado, e tivemos reações muito giras de pessoas que, de repente, ficam surpreendidas.

LM: Eu acho que tem que ser para nós um exercício importante, de tentar sempre… É mesmo um convite! Um convite a que as pessoas entrem na proposta. Para nós é frustrante que alguém vá ao concerto e saia defraudado. E somos o tipo de músicos para quem o público é importante.

E agora para terminar, o que podemos esperar da vossa atuação no Rescaldo?

JS: Vai ser…

Travassos (Programador do Festival Rescaldo): Um concerto de Natal!

JS: Um concerto de Natal! (risos)

Olha que tu sais na entrevista! Já saíste…

Travassos: Vai ser brutal, vai ser um concerto bestial.

JS: Vai ser um concerto de Natal, o Travassos vai ser o Pai Natal, vai estar com duas renas pequeninas… (risos)

LM: Não, vai ser um concerto à volta do que é o disco.

JS: Sim, nós ainda estamos a pensar o que vai ser esta atuação, mas vai ser, mais do que tudo, a apresentação do disco e… essa é a ideia maior.

LM: Vamos tentar fazer o que está no disco… bem! Não sei se conseguiremos fazer mais alguma coisa para além do que está no disco, provavelmente sim.

JS: Vamos ver!...

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Almost a Song :  http://shhpuma.com/almost-a-song/
Festival Rescaldo : festival-rescaldo.info

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